O espírito do meu ancestral

Isso aconteceu comigo a um tempo atrás, e me marcou profundamente. Agora sempre que eu vou fazer algo de errado eu lembro daquele momento de puro terror e penso se realmente vale a pena fazer o que eu estou para fazer.

Era noite e eu estava conversando com mais quatro amigos no andar térreo do prédio onde moramos. Como estávamos em férias escolares, não estávamos preocupados com o horário. Já devia ser quase 2:00am e estávamos entediados e sem o mínimo sono. Então como o bando de adolescente de 16 anos desmiolados que a gente é, resolvemos fazer alguma coisa mais emocionante.

- Já sei, vamos pegar o carro de um dos nossos pais.
- Aqui ninguém sabe dirigir, duvido que a gente consiga tirar o carro da garagem.
- Já sei, vamos sair apertando as campainhas dos apartamentos e depois sair correndo
- Que isso cara, larga de ser infantil!
- Vamos jogar ovo em quem passa na rua!
- Não ta passando ninguém na rua, SUA ANTA!

Foi ai que alguém falou o que começou a nossa pequena aventura.

- Pelo menos se a Karen não tivesse ido viajar com a família dela, a gente podia ficar olhando para ela!

Karen é uma garota que mora aqui no prédio. Ela é muito linda e tem um corpo escultural para alguém da idade dela (17). E mesmo sendo mais velha que a gente, ta sempre andando com a gente quando ela está aqui no prédio. Todo mundo fica babando quando ela passa.
- É mesmo! Ia ser uma boa se ela tivesse aqui!

- Eu tive uma idéia! O apartamento dela esta vazio...

Todo mundo olhou para o cara que falou isso. Eu não sei o que os outros pensaram, mas eu pensei que o cara devia estar brincando quando falou isso, e se não tivesse, então que ele estava maluco.

- O que você quis dizer com isso?
- O que vocês acham?
- Até parece cara. Você ta louco.
- Nem sonhando.
- Ah, qual é! Ninguém vai saber!
- Olha, só para ter certeza, você está falando de invadir o apartamento dela?
- Invadir não, essa já é uma palavra muito pesada. Simplesmente entrar.
- A porta provavelmente está trancada. Como é que você pretende entrar, pela janela? São 10 andares!
- Não, com um clipes de papel eu consigo abrir a porta!

No que ele falou isso a gente começou a rir.

- Tá, até parece que você consegue!
- Quando você sabe o que tem que fazer e como uma fechadura funciona é bem simples.
- Tá, e o que você vai fazer se realmente conseguir entrar lá dentro? Ver TV? Tomar refrigerante?
- Não, eu estava pensando em ir para o quarto da Karen e dar uma xeretada lá! Quem sabe encontrar um diário dela e dar uma olhada para ver se ela escreve alguma coisa da gente! Ver o que ela tem no computador! Ou quem sabe mexer na gaveta de calcinha dela!
- É pervertido! Vê se cresce cara! Coisa mais doente!

Mas só dele ter falado isso para um bando de moleque de 16 anos foi o suficiente para plantar a minhoquinha lá na cabeça. Ai a gente já começou a se empolgar.

- Pervertido nada! Quem aqui nunca quis dar uma olhadinha nas coisas dela, para ver o que ela pensa! E quem nunca quis chegar tão perto das calcinhas dela e poder encostar sem levar um safanão na cabeça.

Silêncio total. Ficamos pensando por uns cinco minutos. Todo mundo pesando o lado bom e o lado ruim. Não era lá uma coisa muito descente de se fazer, muito pelo contrário. Alem de ilegal, era meio que "sujo". Só de pensar naquilo eu já me sentia meio envergonhado. Mas mostrar a fruta proibida para um bando de moleque com os hormônios em ebulição, deixá-la ao nosso alcance e esperar que não faríamos nada, já era demais.

Até que o gordinho quebrou o silêncio:

- Eu pego o clipe de papel lá em casa.

Todo mundo deu um pulo e saiu correndo atrás dele. Alguns minutos depois estávamos os cinco na porta de serviço do apartamento 102. O Pedro (o que falou que conseguia abrir a porta com o clipe) estava lá ajoelhado se contorcendo todo, chacoalhando de leve os clipes no buraco da fechadura. Tínhamos pegado lanterna também, já que não queríamos acender a luz.

- Não tem ninguém ai né?
- Não.
- E a empregada?
- Ta de férias.
- Tem certeza?
- Tenho, a casa ta vazia.

Ficamos um bom tempo lá e já estávamos perdendo a esperança, quando ouvimos um estalo vindo da porta.

- CONSEGUI!!!! CONSEGUI!!!! EU FALEI QUE CONSEGUIA!!!
- P... Q.. P....!!! Ele conseguiu mesmo!
- Eu não acredito!

A então ele girou a maçaneta e a porta foi abrindo aos poucos. Tudo escuro lá dentro.

E lá estávamos nós, a porta aberta, a casa vazia, lanternas nas mãos e totalmente sem saber o que fazer.

- Sabe cara, eu falei que topava, mas foi porque eu achava que o Pedrão não ia conseguir abrir a porta.
- Nem eu!
- Eu falei que conseguia!
- Então entra!
- Eu falei que conseguia, não que ia entrar!
- A idéia foi sua! Entra!
- Sei lá cara, agora que eu estou aqui é diferente.

Nós ficamos lá parados por uns dez minutos sem saber o que fazer.

- Olha cara, a gente não veio até aqui para ir embora no ultimo minuto.
- Eu não vou entrar.
- Alguém tem que entrar.

Cabeça de adolescente é assim mesmo. Mesmo sabendo que é errado e que pode dar confusão, alguém tinha que entrar já que a gente tava lá.

- Ta bom. Mas entrar para fazer o que?
- Sei lá, mas tem que provar que entrou e que foi lá pra dentro. Tem que trazer alguma coisa.
- É, alguma coisa do quarto dela.

Ai a gente se olhou e falamos os cinco de uma vez só.

- Uma calcinha dela!
- Mas tem que ser uma bonitinha!
- tem que ser de renda!
- Tem que pegar a que ta lá no fundo da gaveta!
- Uma vermelha!
- Que vermelha o que, preta!

E por ai foi. Ficamos discutindo por mais uns dez minutos, não porque não concordávamos, mas porque ninguém realmente queria ir.

- Ta bom. Então tem que ser a calcinha mais sexy que tiver lá.
- Mas não é pegar qualquer uma! Tem que comparar qual é mais sexy e trazer!
- Ta e quem vai?

Silêncio de novo. Quem iria. Quem seria o infeliz que iria entrar lá dentro?

- Já sei! Vai lá Hitaro

Tinha que sobrar pra mim!

- Porque eu?
- Por que você é ninja cara!
- Eu sou descendente de japonês, não ninja seu idiota!

Mas já era tarde demais. Simplesmente porque eu era descendente de japonês o meu destino estava selado.

- Hitaro! Hitaro! Hitaro! Hitaro!
- Eu não vou! Vocês tão loucos!
- Hitaro! Hitaro! Hitaro! Hitaro!
- Mas nem a pau!
- Hitaro! Hitaro! Hitaro! Hitaro!
- Esquece cara, a idéia não foi minha e nem o clipe era meu.
- Hitaro! Hitaro! Hitaro! Hitaro!

Mas não adianta tentar racionalizar com um bando de moleque. Quando eles se juntam contra um já era.

- Ta bom. Eu vou.
- Vai lá Hitaro, mostra que você é ninja!
- A casa ta vazia mesmo né?
- Olha, a porta ta aberta a mais de vinte minutos, a gente ta falando alto pra caramba aqui e ninguém veio ver o que está acontecendo. Sem falar que eu já falei que ta todo mundo viajando e a empregada ta de férias. O que você acha?

E isso foi tudo o que foi dito. E lá vai o pobre Hitaro, reduzido a um simples rato numa missão sórdida e desonrosa, roubar calcinha de uma garota. Mas mesmo me sentindo o pior ser humano do planeta, lá fui eu. Eu fui entrando sem fazer barulho nenhum, iluminando todos os cantos do apartamento, me assegurando de que estava vazio. Passei pela cozinha, pela sala, olhei o escritório pra ter certeza de que não tinha ninguém, olhei os banheiros e os quartos. Menos mal, a casa estava realmente vazia. Não achei ninguém em nenhum canto da casa. Então fui aos poucos para o quarto da Karen, a garota dos sonhos da molecada do prédio. Abri a porta devagar. O quarto também estava vazio. Dei uma olhada em volta. Já tinha estado naquele quarto antes, mas dessa vez era diferente. Ele parecia diferente. O meu coração estava batendo a mil. Eu empunhei a lanterna e fui em direção ao guarda roupas. Eu sentia o coração na garganta. Abri uma porta e depois a outra. Todas as roupas dela estavam lá dentro. Dava para sentir o cheiro dos perfumes que ela usava. Eu olhei para a gaveta das calcinhas e fui aproximando as mãos. Antes que e pudesse encostar nela, eu ouvi um barulho do outro lado do quarto, barulho de metal batendo. Eu gelei, não conseguia me mexer. estava paralisado de medo, tinham me pegado. Eu nunca senti tanto frio na minha vida, parecia que o quarto estava gelado. Fazendo um pouco de força eu consegui me virar aos poucos. No que a minha visão chega na fonte do barulho, eu achei que ia morrer. Ali na minha frente um homem um pouco mais alto do que eu, numa armadura idêntica a um samurai, segurando uma espada na mão, me encarando. O rosto dele estava com uma máscara, mas deixava os olhos à mostra. Dois olhos com um leve brilho azul e frio. O olhos inteiros faiscavam de azul. Um pânico tomou conta de mim e antes de eu pensar, eu já estava berrando com toda a força que a minha garganta permitia e estava correndo pela casa. Assim que eu sai do quarto deu para sentir a brusca mudança de temperatura, o calor me atingiu e eu simplesmente continuei. Passei pelo corredor, pela sala, pela cozinha encontrei todo mundo na porta me olhando assustados, falando para eu parar de gritar. Eu passei por eles e entrei pela escada e comecei a correr escadaria abaixo, no escuro mesmo.

Depois de três andares eu pisei de mal jeito na escada, torci o pé e caí no chão. Eu só me arrastei para o canto e fiquei encolhido feito um feto. O pessoal achou que afinal a casa não estava vazia e fecharam a porta do apartamento e vieram atrás de mim. Eles acenderam a luz da escada e acabaram me encontrando mais abaixo encolhido no canto, com o pé torcido e chorando. Eles ficaram assustados e me perguntaram o que foi. Eu não conseguia responder, eu não conseguia falar. Eles me levantaram e me levaram até o térreo e tentaram me acalmar.

Depois de um bom tempo eu consegui falar, e relatei a eles o que eu tinha visto. É claro que não acreditaram, então eu perguntei porque eles achavam que eu ia sair berrando de um apartamento que eu estava invadindo, desceria correndo a escada no escuro, torceria o meu pé e ficaria no canto encolhido chorando. Eles acharam estranho, então eu mandei eles irem lá para verem por eles mesmo. Ninguém teve coragem de entrar lá. E ainda precisávamos trancar a porta de novo com o clipe. Mas para aquele dia já tinha sido o suficiente. Cada um foi para a sua casa e esperamos que ninguém fosse no apartamento da Karen e encontrasse a porta aberta.

No dia seguinte mais calmos nós acabamos conseguindo trancar o apartamento e nunca mais fizemos isso de novo. Quando a Karen chegou, o gordinho foi na casa dela "visitar" ela e aproveitar para ver se tinha algo que eu poderia ter confundido com um guerreiro samurai no quarto dela. Ele não achou nada.

Eu falei com os meus avós outro dia sobre samurais e acabei descobrindo que um ancestral meu tinha sido um samurai, e dos bons, na época do Japão feudal. E como todos sabem os samurais são guerreiros de honra e no Japão honra é algo muito importante.

Será que esse meu ancestral veio me impedir de fazer algo que pudesse sujar a honra da família? Eu sei que agora sempre que eu estou para fazer alguma coisa não muito honesta ou não muito boa eu lembro daquele rosto cheio de desaprovação e censura que eu vi naquele dia, e acabo desistindo. Apesar de ser da família eu não gostaria de receber uma visita dele de novo.


Hitaro - SP - São Paulo