Minha bisavó

Remexendo meu baú de memórias lembrei-me de um fato horripilante que ocorreu comigo e minha mãe em um final de tarde dos idos anos oitenta. O ano exatamente eu não me recordo, mas creio que foi e torno de 1983 ou 1984, pois eu ainda não tinha nem dez anos. Talvez por isso eu já havia me esquecido da história toda, não me lembro dos detalhes, apenas do grande medo que senti.

Naquela época minha bisavó ainda estava viva e morava sozinha em sua própria casa, em um bairro vizinho ao nosso. Como naqueles dias ela estava sem a empregada que morava no emprego, as pessoas se revezavam para alimentá-la e pernoitar em sua casa. Naquele dia especificamente, me lembro que eu e minha mãe estávamos esperando um dos nossos parentes para pernoitar com ela, mas minha mãe resolveu ir à noitinha na casa dela para preparar uma sopa e um mingau para mais tarde. Minha bisa apesar de ser uma velhinha forte, já estava com sérios problemas de visão, o que já estava dificultando sua vida, coitadinha.

Voltando ao assunto, ela morava em uma baixada que na época não havia calçamento nas ruas, a iluminação pública era precária e havia um terreno baldio da prefeitura que servia de lixão para os moradores. Hoje em dia, este terreno abriga uma praça, uma quadra e um playground, mas àquela época o mato e o lixo tomava conta do local.

Com isso, era comum haver mendigos, ratos, cães e outros seres que por ventura passavam por lá em busca de comida. E justamente neste comecinho de noite, que eu acho que era por volta das 19 horas, nós descemos a ladeira que dava acesso a esta bifurcação, para dobrarmos a esquina e chegarmos na casa dela. Me lembro que a rua estava deserta e a noite fazia frio.

De longe avistamos um bando de cães de rua latindo e avançando para um monte de lixo que estava caído no meio do terreno. Com medo deles avançarem em nós, minha mãe ficou receosa e diminuiu o passo pensando se fosse melhor voltarmos a subir a ladeira e ir por outro caminho. No entanto, os cães saíram em disparada com os rabos entre as penas, gritando com medo.

Isto a princípio nos tranquilizou, pois alguém havia espantado os cães. Mas, à medida que nos aproximávamos do terreno, começamos a ouvir um grunhido ou um gemido; eu não tenho certeza, mas me lembro que o som era alto e lembrava um pouco os roncos que os gatos fazem quando estão namorando, só que mais baixo e mais forte.

Minha mãe me disse que talvez fosse outro cachorro maior que pos os outros para correr ou algum mendigo bêbado que estava tentando dormir no local. Mas, como o barulho aumentava, percebemos uma massa grande e escura se movendo no meio das tralhas e se arrastando como uma cobra vindo em direção à rua. Minha mãe me agarrou pelas mãos e disse: "Corre!" E saímos correndo pelo canto da rua antes que aquilo viesse para nosso lado.

A princípio minha mãe achou que fosse alguém de palhaçada querendo nos assustar, mas quando já estávamos chegando na esquina da casa da bisa, vimos aquela massa amorfa se arrastando pela rua. Eu não me recordo se aquilo estava tentando atravessar a rua, ou estava circundando o terreno, só me lembro de ver aquilo que deveria ter o tamanho aproximado de um bezerro, grunhindo e se mexendo no meio do mato.

Como naquele tempo nem orelhão havia por perto, nós ficamos na casa da vó até mais tarde, para dar tempo de meu avô ou meu pai vir ao nosso encontro, porque nós não saímos da casa sozinhas. No retorno, só me lembro de estar dentro do carro de alguém e do motorista ligar o farol alto no meio do mato a busca de pelo menos o rastro do bicho. Mas nada mais vimos.

Reforçando o que anteriormente eu citei, minha bisavó era uma mulher de natureza forte, chegando a alcançar a idade aproximada de 107 anos. Com exceção das vistas doentes, típicas da idade e de problemas de derrame, ela havia ficado cega, mas a saúde dela era perfeita e ela faleceu por idade mesmo, o coração dela enfraqueceu aos poucos até parar, vindo a cessar em uma tarde de páscoa; anos depois do ocorrido.

Com relação ao histórico onírico, eu estava na casa de meu tio onde ela morava, e cheguei até a cozinha e vi que uma tampa de caixão branca estava em pé encostada na parede. Então eu falei para meu tio:

- Nossa, faz tempo que aquilo aconteceu e o senhor ainda guarda esta recordação?

Então ele me respondeu:

- Faz tempo mesmo.

Nisso, um patinho verde-azulado surgiu em cima da tampa do ataúde e voou em meu colo e eu abri os braços para pegá-lo. Então eu o abracei e nos meus braços o patinho se transformou em um lindo buquê de flores brancas... Eu acordei sentindo um forte odor de pessoa idosa em meu quarto, mais precisamente ao lado de minha cama. O cheiro ficou por um certo tempo e desapareceu.

Como era domingo de festa, eu fiquei um pouco mais na minha cama com preguiça e planejando como seria meu dia. Então eu ouvi o telefone tocar e minha mãe atendeu em seu quarto. Passado alguns minutos, ela veio me acordar e começou a me dizer mais ou menos assim:

- O tio S. acabou de ligar...

Então eu interrompi:

- Já sei, a vó morreu!

Aí ela me falou:

- Ah então você escutou eu falando com ele ao telefone?

Eu disse que não, que a porta estava fechada e eu acordei com o toque do telefone.

Contei a ela o meu sonho e ela pasma, me disse:

- Ele falou que a médica dela disse que era para nós irmos lá para nos despedirmos, porque ela amanheceu muito fraquinha e não convém levá-la ao hospital.

Eu disse que não iria, pois ela havia se despedido de mim.

Minha mãe me olhou, não disse nada por um tempo, e resolveu ir ter com ela na casa de meu tio. O dia correu estranho, mas eu estava em paz e sabia que ela já estava de certa forma desconectada do corpo. À tardinha, minha mãe ligou avisando que já tinha terminado.

Como um ratilho de pólvora, a história do meu sonho premonitório já havia se espalhado pela família e muita gente veio falar comigo sobre o assunto, o que me deu uma certa chateação. Saindo um pouco do enfoque sobre a vida dela, eu fui ao velório e foi a primeira vez que eu passei a noite em claro velando um corpo.

Como eu ainda era uma adolescente metida a besta, ainda mais tendo uma certa atenção especial devido ao meu sonho, lá pelas três horas da madrugada, estávamos somente eu, outro tio filho dela e meu avô lutando contra o sono daquela fria madrugada de outono. Como eu tenho uma predileção por este meu tio devido à sua alta evolução espiritual (mais tarde, ele foi uma das pessoas que mais me incentivou na minha jornada espiritualista) e por seu jeito meio debochado, tivemos a "feliz idéia" de ficarmos provocando um ao outro de irmos nos outros velórios, contando piadas (parece bobagem, mas no velório da minha bisa, tivemos tempo para conversar, matar saudades, mesmo sofrendo com a perda e respeitando nosso ente querido, nós não somos hipócritas de ficarmos nos descabelando e dando "shows" de mediocridade) e ele me falou que duvidava que eu tivesse coragem de entrar sozinha no cemitério.

E sem pestanejar, pedi licença ao coveiro e passei um caô qualquer, e falei que iria até o ossuário (que era perto) e já voltava. Ele falou que não tinha perigo, porque a noite estava movimentada devido ao número de pessoas no velório e que não havia nenhum risco de eu topar com algum desocupado que por ventura estivesse se drogando atrás dos túmulos.

Então eu saí, dei uma bela volta nas ruelas do cemitério, passei em alguns túmulos de conhecidos, fui até o ossuário, circulei a capela e retornei sem medo algum para o velório e encontrei meu tio esperando pela minha cara de assustada; logicamente, naquela época eu já tinha esquecido o episódio da massa amorfa, e se tivesse me lembrado, a coisa seria diferente e eu não teria tido a cara-de-pau de encarar o desafio. Mas como ele viu que eu não tava nem aí, acho que ele percebeu que eu era "séria" (imagine se fosse zoada!) e começamos a conversar a respeito do meu sonho, de como o espiritualismo via aqueles e outros fenômenos, como ele via a espiritualidade, e eu comecei a enxergar as coisas da maneira como eu encaro hoje. E quando amanheceu, eu percebi que desde aquele sonho eu meio que passei por um ritual de passagem, e descobri que existe muita coisa a ser estudada e compreendida.


Jaqueline Cristina