Gordinho

Primeiro gostaria de dizer que sou fã do podcast, que tenho grande admiração por pessoas que sabem como contar uma história, interpretar bem um texto e passar o sentimento contido nas palavras, prendendo a atenção do ouvinte como uma cantor faz com uma música. Como logo verá no seguinte relato não compartilho desse talento, acabo resumindo tudo num minuto, pulando detalhes ou encurtando demais a história, por isso sinta-se a vontade pra usar de qualquer licença poética que achar necessária.

Quando era pequena estudava em uma escola estadual no interior paulista e lembro de um menino gordinho que não me recordo o nome, perguntei a minha irmã, a minha prima e até a minha tia mas, embora todos se lembrassem dele, ninguém lembrava de seu nome, mesmo uma professora que nos deu aula, e é amiga de minha mãe não conseguiu lembrar.

Os meninos colocava o pé no caminho dele pra ele tropeçar e puxavam sua mochila pra trás até fazê-lo cair sentado, davam apelidos e esbarravam propositalmente nele, que nunca reagia.

Estava sempre sozinho e calado, não sei dizer se triste, isso foi muito antes de termos como qua e depressão se tornarem comuns, ninguém ligava pra isso na época.

Como toda criança tinha medo das histórias de terror que vez por outra circulava na cidade pequena onde morava, do filho de fulano que fez pacto e agora virava lobo, da mulher de branco que vagava a noite nas estradas próximas pedindo carona, do corpo seco que se via andando pela mata e coisas assim.

Mas, fiquei mais impressionada numa vez quando perto da pequena rodoviária local, um caminhoneiro desses grandes e muito forte, entrou correndo assustado quase que derrubando a porta de uma casa próxima, fugindo de uma onça preta, que o perseguiu mais de três kilometros desde o marco da divisa do município, onde trocava um pneu do caminhão, correu até entrar na primeira casa que encontrou e escorando na porta atrás de si assustou eu todos na casa. Um senhor de idade que morava lá veio recebê-lo com uma espingarda, mas ao perceber a situação e ver com os próprios olhos o felino pela janela da frente, apontou a arma pra porta e disse pra abrir uma fresta que ia dar um tiro, pra abrir devagar e segurando a porta, mas quando abriu não tinha nada lá, além dos arranhões do lado de fora da porta, e os vizinhos e o pessoal do turno noturno da rodoviária saindo pra ver a comoção.

O vizinho do lado, também armado, jurou ter visto a tal onça pela janela da própria casa, mas quando voltou com a arma ela tinha sumido, o relato deles fica mais estranho quando todos dizem ter ouvido um assobio agudo e demorado, enquanto procuravam o animal nós arredores, que os mais velhos diziam ser o saci.

Fato é que buscas foram feitas por homens armados, envolvendo o delegado e dois soldados da polícia rodoviária que estavam passando pela rodovia e encontraram o caminhão abandonado e nada foi encontrado.

Ao amanhecer, na rádio da cidade, o locutor já contava a história nas últimas novidades, com direto a testemunho, e talvez por falta de assunto repetia o acontecido a cada poucas músicas, sempre com algum detalhe a mais.

Então, pela manhã na escola era o assunto do momento, todos tinham que falar algo da onça que perseguiu o caminhoneiro, fizeram questão de ir pelo caminho que passava na frente da rodoviária pra ver as marcas de garras na porta e passar os dedos nelas.

Mas pra não perder o costume alguém pegou a barra da camisa do gordinho e a prendeu num dos arames da tela da cerca da quadra de ginástica durante a execução do hino, antes da entrada para as aulas.

Quando tivermos a permissão pra entrar no prédio ouvimos a camisa do gordinho rasgar um pedaço atrás e uns botões da frente saltar pra fora revelando um enorme ferimento no peito do lado esquerdo, desde o ombro até a última costela, três linhas arranhadas profundamente na pele.

Ele fechou a camisa rapidamente, mas uma professora o levou pra dentro na sala dos professores e não o vimos mais naquele dia.

Ficamos morrendo de curiosidade, mas nada foi explicado. Alguns pais foram chamados para conversar, não só os do gordinho. Virou um problema sério e os moleques pararam de mexer com o gordinho, como se aqueles arranhões tivessem sido encarados como mais uma brincadeira de mal gosto feita pelos colegas dele.

Nem dava tempo, ou foi muita coincidência, pois a história do caminhoneiro tinha ocorrido na noite anterior, era muito recente pra já terem pensando em fazer algo assim com ele.

Havia também uma velha que falava sozinha e criava gatos, devia ter uns dez, ninguém lhe dava muita atenção, mais de uma vez se via conversando sozinha, como se falasse com alguém, diziam que falava com os gatos, quem tem pet pode achar isso normal, mas o estranho era que ela sabia de coisas que aconteciam longe, que não tinha como ter visto, que ninguém ainda tinha contado, desconfiavam que os gatos viam as coisas e contavam pra ela, por mais absurdo que possa parecer um gato fofoqueiro, todos que a conheciam tinha uma história pra contar sobre isso.

Cidades pequenas tem muita gente esquisita, não que na cidade grande não tenha, mas acho que na cidade grande não se presta muita atenção, pode-se passar um ano sem saber sequer o nome do seu vizinho.

Enfim, ela disse uma vez que um tímido gordinho costuma caminhar a noite toda pelas ruas desertas ficando por vezes até o amanhecer no muro atrás do cemitério dos padres.

Ocorre que nessa cidade há uma igreja muito grande que também é monastério, e que quando falece um Padre, é enterrado no terreno atrás do monastério, um terreno grande cercado por pinheiros altos e um muro baixo, uns dois metros de altura, caiado direto nos tijolos de barro. Contou também que certa noite deu de encontro o gordinho tímido com uma fera que vagava pela noite, e atacando o garoto teve uma surpresa, o quieto rapaz revidou, fechou a mão em volta de uma pedra do calçamento, e acerto a cabeça do monstro pelo lado do olho pouco a frente da orelha, com tanta força que afastou a fera, que ficou desnorteada, e ao invés de aproveitar a oportunidade pra fugir, se levantou e buscou um galho caído de um pinheiro e de posse dele avançou sobre a criatura que fugiu assustada. Então a perseguiu até os limites da cidade, o que pra ser sincera não foi muito longe, e o bicho sumiu mata adentro.

Como eu disse, não se leva muito a sério o que conta essa velha senhora, e o rapaz gordinho que conheci não revidava a nada, mas mesmo assim não posso negar que as marcas no peito dele se pareciam muito com as deixadas na porta próxima rodoviária.

Pouco tempo depois o gordinho e sua família se mudaram da cidade, seu pai conseguiu emprego em uma montadora de carros e levou a família pra uma cidade maior.

E eu passei a vida procurando alguém com uma cicatriz na cabeça entre o olho e a orelha do lado esquerdo.

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