A Mille o Burro e a Estrada Deserta

É meu segundo texto aqui na Casa. Conforme comentei em meu primeiro relato, do Hotel Granada, embora nunca tenha vivenciado situações de fato assustadoras, me propus a eventualmente relatar situações no mínimo curiosas que me ocorreram. E aqui vai mais esta.

Isso aconteceu no ano de 2004. Sou eletrotécnico e na época eu trabalhava prestando serviços para o INT (Instituto Nacional de Tecnologia), na Divisão de Energia. Embora a sede seja aqui no Rio, o INT faz serviços no Brasil Todo. E embora eu mesmo não fosse funcionário (eu era Bolsista - uma espécie de contratado temporário avulso), eu atuava como se fosse um, inclusive viajando, resolvendo com certa autonomia os trabalhos que surgiam.

Nesta época o INT estava com trabalhos em parceria com o SEBRAE-RJ e uma agência de cooperação chamada GTZ. E um deles era um pacote de assistência tecnológica a um grupo de empresas produtoras de gesso, em uma cidade chamada Araripina, lá pra dentro de Pernambuco. E lá fui eu, trabalhar. Minha tarefa compreenderia várias coisas tipo levantamentos de dados nas indústrias, medições, projetos de eficientização, pequenos projetos elétricos, palestras, pequenos cursos, etc.

Como não havia vôo direto para esta cidade, o trajeto acertado ficou da seguinte maneira: Pegaria um vôo para a cidade de Petrolina e de lá só mesmo de carro, até Araripina. Então alugaria um, que poderia ser com motorista e tudo ou só o carro mesmo. Dos meus parceiros na época que posteriormente foram também fazer trabalhos lá, todos alugavam carro com motorista. Eu que sou meio aventureiro, preferi alugar só o carro.

E assim foi. Cheguei a Petrolina de tarde no vôo da TAM e preferi deixar para seguir para Araripina no dia seguinte, pois a coisa é longe (são mais de 200km de Petrolina a Araripina!). Então fui pro hotel, me hospedei e depois saí para contratar o carro. Cheguei na agência e contratei uma Fiat Mille. Para não pagar uma diária à toa, deixei tudo engrenado e combinei que viria pegar o carro no dia seguinte, lá pelas 8 da manhã. Voltei pro hotel, depois saí para jantar, dei umas voltas por perto, voltei e fui dormir.

No dia seguinte acordei cedo, fechei o hotel e saí para a agência. Tudo já combinado, peguei a chave do carro, assinei a guia e fui pro dito-cujo. Os caras já haviam deixado a Mille perto do portão e quando me aproximei, a buzina dela disparou, do nada. Achei que fosse alarme, mas o rapaz que me acompanhava disse que não tinha alarme. Achei curioso o som da buzina, que era do tipo "bi-bi" e meio rouco, apesar de bem alta. Normalmente o som da buzina da Mille é tipo "fon-fon".

O camarada então abriu a porta e ficou dando uns tapinhas no comando da buzina, até que ela parou. Quando eu entrei no carro, de novo a buzina disparou. Fiquei dando uns tapinhas também, mas nada. Então o cara veio e conseguiu calar ela. Mas novamente, quando eu fui ligá-la, a buzina disparou e custou para sossegar. O cara meio sem jeito perguntou se eu poderia esperar um pouco o eletricista chegar para dar uma olhada ou se eu queria trocar de carro. Como eu não queria perder tempo, preferi trocar de carro. Só que o outro carro disponível era uma Fiat Strada. Eu preferia carro fechado, mas como não tinha outro na mesma faixa, peguei a picapinha mesmo.

Voltamos lá no balcão, substituímos a guia, pegamos a outra chave e eu mesmo fui lá dentro do pátio pegar a Strada. Já no carro, quando estava passando em frente à Mille, para sair pelo portão, dei uma olhada de relance para ela e percebi que ela piscou o farol e fez "bi-bi". Imaginei que fosse o eletricista ou alguém que tivesse ido pegar ela para checar o problema e tivesse me cumprimentado ao me ver passar. Então eu buzinei também ("fon-fon") e como tenho mania de dirigir com o braço esquerdo pousado na janela, com o vidro aberto, ainda fiz "tchau" com a mão e só então percebi que a Mille estava vazia. Não havia ninguém dentro dela. Não dei importância, passei pelo portão e fui embora.

Andando por Petrolina e ao mesmo tempo olhando o mapinha que eu tinha para me orientar para pegar a estrada (eu pegaria uma tal de BR122), me distraí e entrei em uma rua que era contra-mão. Não era muito movimentada, mas era perigosa. Então alguém buzinou bem forte "bi-bííííííííííí...", o que me chamou a atenção. Fiz meia volta e continuei procurando o rumo certo.

Um tempo depois, de novo olhando o mapinha, quase avanço um sinal num cruzamento perigoso e o que me ajudou foi alguém que também buzinou forte "bi-bíííííí...", o que me alertou e vi o sinal fechado a tempo de parar.

Logo a frente, em uma loja tipo meio mercadinho meio armazém, havia dentre vários produtos expostos na frente, uma grande caixa de vidro tipo aquário, cheia de camarão seco, bem rosa, que adoro. Então dei uma parada, para comprar um pouco. Aquilo vai muito bem com cerveja, mas como eu ia pegar a estrada, comprei uma certa quantidade que desse tanto para eu ir comendo pelo caminho, com refrigerante que comprei também, como para logo mais no hotel em Araripina eu traçar com cervejinha. Comprei ainda caju cristalizado e uma garrafa d'água mineral grande.

Saí da vendinha e retomei a rota. Enquanto rodava por Petrolina, várias vezes ouvia buzina tipo "bi-bi" e sempre assim, forte e ao mesmo tempo meio rouca. Até que me acertei no rumo e peguei afinal a BR-122. No início, bastante área povoada, com bastante área agricultada ou com vegetação. Depois a paisagem vai ficando meio árida, com vegetação tipo arbustos secos, cactos, mandacarus, até ficar aquela paisagem típica da caatinga: pouca vegetação, as que existem bastante secas, chão seco, cascalho e calor.

Eu passaria pelos povoados chamados Lagoa Grande, Santa Cruz, Ouricuri e finalmente Araripina. Apesar de meio desolador pela aparência seca, o visual da paisagem predominantemente plana tem lá seu charme. E a estrada basicamente é uma reta. E lembra muito aquelas estradas tipo filme americano, particularmente aquela tal de Rota 66. E até a cidade de Lagoa Grande, apesar de com pouca freqüência, ainda cruza-se com alguns carros pela estrada. Mas depois dela, a impressão que dá e que todos foram embora e nos abandonaram. Nenhuma cidade, nenhum lugarejo, nenhum posto, bar ou restaurante, nenhum carro no retrovisor ou na frente do parabrisa, nada, nada, nada... Só asfalto, paisagem plana com caatinga e calor.

Alguns trechos da estrada eram ruins, com muitos buracos. Mas um pouco depois de Lagoa Grande a estrada estava boa de novo. Não é que fosse um tapete. Na verdade era um asfalto bem grosso, granulado, com cara de velho, porém uniforme. De modo que dava para andar bem. Com o carro bom e silencioso, eu esticava sem sentir a velocidade, mas na verdade eu mantinha em torno de 100 a 120km/h. Barulheira mesmo só a do pneu novo contra o asfalto grosso. Como não vinha nem ia ninguém mais além de mim, eu dirigia bem à vontade, só com o pé no acelerador e uma mão no volante, bem largado mesmo. Até porque devido a ampla visibilidade da pista, pra frente e pra trás, no caso de qualquer carro vindo ou indo daria tempo mais que suficiente para eu me enquadrar no meu cantinho da pista.

A picapinha tinha um CD player e alguém havia esquecido um CD lá dentro. Era um grupo lá da terra - se não me engano o nome era Abacaxi com Caviar ou algo parecido. E lá ia eu, dirigindo largado, comendo camarão seco, bebendo refrigerante e ouvindo forró.

Meio entediado, de vez em quando eu olhava para os lados apreciando aquela paisagem árida. Em determinado trecho, a pista faz um longo e leve aclive. Mas sempre assim, retão. No ponto mais alto, início do longo e leve declive, o retão abre-se de novo à nossa frente, a perder de vista. E observei que até onde a vista alcançava, nada de carro, nada de casa, posto, ponte, morro... Enfim, nada de nada, para não fugir ao padrão reinante.

Eu tenho o hábito quando dirijo de estar sempre checando o retrovisor. E pouco depois que o descidão terminou, eu lembro bem de ter olhado por ele. E não havia nada, até uns 2 ou 3 km atrás, no ponto mais alto da elevação por onde eu acabara de passar. E logo em seguida, olhando para frente, lembro de ver o cone da pista, interminável, se fechando lá na frente a perder de vista. E então dei uma olhada pro lado, observando os cactos. Foi uma olhada rápida, tipo - sei lá - uns 3 segundos talvez. E foi exatamente nesse momento que aconteceu. Estava distraído, quando ouvi uma buzinada bem forte "bi-bííííííííííí....". Imediatmente olhei pra frente e tamanho o meu susto: bem no meio da pista, no meio mesmo, atravessado e parado tranquilamente de pé, um burro, ou jegue, jirico, asno ou sei lá como é o nome certo daquele bicho. E estava virado para a esquerda, com metade do corpo na pista de quem vinha e a outra metade, parte de trás, na minha pista.

Injeção instantânea de adrenalina no sangue, vi que não teria escapatória. Entendi que ia bater. Iria pegá-lo pelos quartos. No meio do nada, eu iria atropelar um jegue. Ato reflexo, meti as duas mão no volante, virei ele para a direita, pisei forte no freio, fechei os olhos e virei a cabeça pro lado e para baixo, já esperando o merdelê.

Sob o efeito da adrenalina, aí veio aquele lance da sensação de câmara-lenta, quando o cérebro processa as informações em ritmo muitíssimo mais acelerado, captando cada detalhe do lance, dando a impressão que o tempo passa devagar. E percebi que o carro ficou meio de revezgüê, porque eu virei o volante, mas que ele não desviou. Senti que ele ia na mesma rota de antes, rumo ao burro, por causa das rodas travadas. Numa fração de segundos eu me perguntei se o bicho entraria pelo para brisa, me esmagando contra o banco, ou se a coluna lateral do para-brisa seria forte o bastante para segurar o tranco. Lembre que eu estava enre 100 e 120km/h!

Tudo isso parecia interminável, enquanto o carro ia deslizando de revezgüete, cantando pneu e eu me dando conta que ainda não tinha batido no burro, mas sabendo que já-já iria receber o animal em cheio. Então veio instintivo o reflexo de soltar o freio. Assim que tirei o pé, o carro deu uma guinada tão violenta para a direita, que mesmo com o cinto, eu bati com a cabeça na parte alta da lateral da porta. E nesse instante eu senti que já era para ter batido no bicho. No entanto, nada de impacto! Então abri os olhos e vi que estava saindo da pista. Já descontrolado, puxei o volante agora para a esquerda. Mas nesse momento, as rodinhas do lado direito tocaram o solo de terra cheia de cascalho e então a picapinha saiu totalmente do meu comando. A bichinha rodopiou de tal forma que parecia que um gigante tinha dado um peteleco nela e saí entrando pelo meio da caatinga rodando loucamente feito um pião. Logo que ela saiu da pista, havia um pequeno declive tipo acostamento, cheio de pedras e cascalho e depois vinha o solo natural mesmo. Nesse ponto o carro já estava rodopiando, mas eu tive a nítida sensação que ele quase capotou. E senti nitidamente que ele ficou em duas rodas. Mas acho que o sentido do giro não deixou ele virar. E lá fomos nós caatinga adentro. Parecia um cabritinho bravo! Com os vidros abertos, foi enorme a quantidade de pedrinhas, cascalho, pedacinhos de galhos secos e poeira que entrou. E eu não tinha nada a fazer, a não ser esperar aquilo tudo parar!

E até que enfim parou! O espetáculo de uns 6 ou 8 segundos mas que pareceu durar uma eternidade, finalmente chegava ao fim. Enquanto a poeira baixava, fiquei uns instantes quietinho, de olhos arregalados, sentado, perplexo, espantado, com o coração disparado e as pernas totalmente trêmulas. E depois que a poeira baixou um pouco, respirei fundo, procurei onde a garrafa d'água tinha ido parar e tomei uns goles. Desliguei o rádio e passei a mão no rosto e senti que eu estava cheio de areia na cara. E notei que o carro todo por dentro estava cheio de terra, pedrinhas, galhinhos... O topo do painel, que até ainda há pouco era preto, estava meio cinza-alaranjado de poeira!

Meio recuperado, saí do carro, para ver os estragos. Dei uma volta na picapinha, buscando identificar danos. Olhei a frente dela, as laterais, a traseira, em cima, em baixo... e felizmente ela estava inteira. Nenhuma marca evidente que pudesse me trazer problemas na hora de devolvê-la.

Então levantei a cabeça, olhei em volta e procurei onde estava em relação à estrada. E achei-a, lá adiante. E notei que eu tinha entrado uns 15 ou 20 metros prá dentro da caatinga! Isso se considerar a distância reta de onde eu estava para a pista. Mas olhando as marcas no terreno, eu vi que eu vim na diagonal, o que dava uns 30 ou 40 metros! Então lembrei do burro! E lembrei também que tudo aquilo foi por causa dele! Então voltei a checar o carro, na lateral do motorista, para ver se estava amassado ou com alguma marca. Passei a mão pelo bico da frente, no paralama, porta, lateral, retrovisor... E felizmente tudo estava intacto!

Refiz o trajeto do carro com o olhar, seguindo as marcas na terra, até a estrada. E no ponto de onde eu derivei não havia nada. Mas um pouco mais atrás, lá estava ele, impassível, placidamente parado no meio da pista, do mesmo jeito que eu o vi antes. Aquele burro cinza enorme, lá no meio da pista!

Já mais refeito do susto, tirei a sujeira do painel e dos bancos, bati os bancos, lavei o rosto com um pouco da água da garrafa, recolhi o camarão esparramado, entrei, liguei o carro e fui devagarzinho pelo meio da caatinga para voltar à pista, sentindo se havia quebrado alguma coisa da suspensão. E parei com a frente já sobre o asfalto e fiquei olhando o burro lá onde ele estava antes, como se nada tivesse acontecido! Fiquei parado ali uns segundos considerando a bizarrice do ocorrido. Como é que eu não vi aquele bicho enorme? Ainda bem que aquele carro buzinou e me alertou, no exato último instante possível de me safar!

Mas aí veio "em close" um pensamento que me deixou atônito: que carro que buzinou, se eu uns 3 segundos antes do lance havia olhado a pista, tanto à frente quanto atrás, e não havia nada? Tornei a sair do carro, e fiquei olhando para um lado e para o outro, tentando ver algum carro. Mas não havia nada! Fui até o meio da pista e me certifiquei que até onde a vista alcançava, não havia nenhum carro. Pensei vagamente que ele pudesse ter saído da pista e estar atrás de algum arbusto. Mas todos os arbustos ali eram pequenos, rasteiros e ralos. De jeito nenhum que caberia um carro oculto atrás de algum. Nem o burro não passaria despercebido se tentasse se esconder atrás de um deles! E de novo outro pensamento desconcertante: Eu tinha certeza de ter visto o funil que a pista faz à frente a perder de vista segundos antes de me deparar com o burro! E ele não estava lá! De jeito nenhum que ele estava! De onde ele saiu? No meio tempo que eu olhei para o lado, de modo algum que daria para ele sair do acostamento, caso ele estivesse lá - e não estava - e andar até o meio da pista. A não ser que ele viesse galopando. Mas nesse caso eu perceberia alguma reação dele estacando, mas ele estava parado tranquilamente, como se já estivesse parado ali a pelo menos alguns minutos!

Nesse momento me ocorreu um pensamento que me deu um pouco de medo: seria alguma armação para assaltar? Então voltei rápido para perto do carro e fiquei parado atento, olhando em volta, tentando perceber algum movimento. Como já disse, não dá para se ocultar atrás dos arbustos daquele tipo de caatinga. Mas sei lá, vai que estivessem camuflados! E fiquei uns 2 ou 3 minutos atento em busca de movimentos na paisagem. Depois desliguei o motor e fiquei em alerta máximo, tentando identificar qualquer movimento ou barulho suspeito. Eu sentia meu coração bater nos ouvidos, tamanho o alerta que fiquei! Enquanto isso, o burro parado lá atrás, do mesmo jeito que estava antes. E durante todo esse período, nenhum carro a vista, nem indo, nem vindo, nem parado.

Depois de alguns minutos, eu me convenci que não havia ninguém por ali, que aquilo não era uma emboscada. Entrei no carro, liguei e vim devagarzinho voltando, em direção ao burro. Parei no acostamento a uns 5 metros de distância dele, saí e fiquei olhando aquele bixaroco. E nem é com ele! Os únicos sinais que dava que estava vivo, além de estar de pé, era o rabo que ele balançava de vez em quando e uns tremores que ele dava com os músculos da lateral do corpo. De resto, estava tranquilamente parado, com a cabeça meio baixa, olhando pro nada.

Então eu pensei cá comigo que eu não poderia deixar aquele carinha ali, arriscando um outro maluco passar e não ter a mesma sorte que eu. Então eu fiz "xxxxôôôôô burro!". E ele nem se tocou. De novo fiz "xxxxxôôôôôô burro", mas dessa vez agitando os braços e batendo os pés. E de novo, ele não me deu a mínima! Fiz isso mais umas vezes, inclusive batendo na chaparia do capô do carro e nada. Então abaixei e peguei umas pedrinhas no canto da pista e comecei a lançar nele. O máximo que consegui foi fazer ele virar a cabeça na minha direção, me olhar por uns instantes e depois voltar à sua posição original.

Desconcertado, fui me aproximando devagar, até que fiquei frente a frente com ele. Ele me olhava, eu olhava para ele... aquele sol, aquele silêncio, aquele calor... Nenhuma viva alma além de nós... Aí, me veio à mente aquele filme "O Predador", em que aqueles caras estão no meio da selva, longe de tudo e de todos, e coisas estranhas começam a acontecer e um a um eles vão sendo exterminados por uma criatura invisível e não há ninguém que possa fazer qualquer coisa para evitar, pois eles estavam absolutamente sozinhos!

Ali no meio do nada, na estrada deserta, esse pensamento me incomodou muito. Pensei em simplesmente correr para o carro e rapar fora. Mas eu não poderia deixar aquele bicho ali no meio da estrada. E tentei mais algumas vezes fazê-lo andar. Mas ele não arredava o pé. Até encostar nele e empurrá-lo, pelo lado, eu tentei depois de um tempo e nada. Então tive uma idéia: fui no carro e peguei uns camarões e mostrei a ele, meio de longe. Ele nem aí. Cheguei perto e com a mão aberta, coloquei-os perto da boca dele. Então ele esticou o pescoço, fungou e moveu os beiços. Quando vi aqueles dentões, me assustei e larguei os camarões no chão enquanto puxava a mão. Aí, para minha surpresa, ele deu um passo à frente, abaixou a cabeça no chão e começou a comer os camarões! Bingo! Descobri como mover o bicho! Ele também gostava de camarões secos, he, he...

Voltei no carro, peguei o saco de camarões e fiz mais um teste. Jogava o camarão perto dele, ele esticava o pescoço e comia. Jogava um pouco mais longe, ele dava um passo e comia. Então, fui fazendo a clássica trilha de iscas até fora da estrada. Mas achei que ali no acostamento não era suficiente. Ele poderia facilmente voltar prá pista. Então novamente fiz trilha e dessa vez levei o bichão até uns 20 metros afastado. Por via das dúvidas, no final eu iria deixar um pouco de camarões espalhados. Só que quando vi, restavam poucos. Então espalhei o restante todo por ali. E voltando, olhei o bicho comendo aqueles camarões salgados, pela trilha, com areia... E deu pena dele. Fui lá no carro, peguei a garrafa d'água que ainda tinha mais da metade e voltei a ele. Espirrei um pouco da água na focinha dele, achando que ele iria levantar o pescoço e querer a água. Mas não, ele nem ligou. Então novamente joguei água, mas dessa vez mais, até escorrer pela boca dele. Mas mesmo assim ele nem quis saber da água. Então parei de jogar água nele e fiquei olhando em volta, refletindo: Nem casa, lago, sombra, árvore, rio... nada! Isso é um jegue ou um camelo? Como é que esse bicho sobrevive aqui? O que come? O quer bebe? É selvagem ou será que alguém cuida dele?

Fiquei olhando ele mais um tempo. Então peguei um "McGiver" (um multicanivete) que eu levo no cinto, abri a garrafa e deixei ela lá no final da trilha de camarões. E fui embora. Quando passava pelo bicho, não falei, mas pensei assim "tchau, amiguinho. Boa sorte!". Antes de entrar no carro, ainda dei uma olhada nas minhas marcas deixadas na pista. Pelo lugar que o burro estava e pelas marcas da freada, vi que desviei exatamente o milímetro exato para não bater. O fato do carro ter vindo avançando freado e inclinado, foi exatamente o que fez com que eu não encarasse o burro de frente. Mas eu o teria pego meio de lado. Pior ainda! Ele não entraria pelo pára-brisa: Ele teria entrado pela janela da minha porta! E o fato de eu ter soltado o freio na hora exata fazendo o carro dar aquele guinadão, foi justamente o que me levou para longe do bicho, no momento crucial!

Olhando mais a frente, via a longa trilha que fiz no cascalho do acostamento, quando comecei a girar. E mais a frente, durante um pequeno espaço, simplesmente não havia marca nenhuma, para depois novamente identificar grandes sulcos no chão. Ou seja, durante um breve instante, eu literalmente voei com o carro! Fiquei impressionado! Voltei ao carro, fiz meia volta e segui viagem. Mas dessa vez sem passar dos 80km/h e com atenção redobrada!

No caminho fui refletindo... Como o burro num instante não estava lá e no instante seguinte estava, eu jamais vou saber explicar. Mas aí comecei a me dar conta de um mistério que para mim foi até maior que o do burro: a buzina! Quem foi que buzinou, me alertando no exato último instante? E aquela buzina... Sim, me dei conta que aquela buzina era exatamente igual à da Fiat Mille que era para estar comigo e não peguei justamente porque a buzina dela deu pití! E me dei conta também que foi a mesma buzina que me alertou lá em Petrolina quando eu entrei na contra-mão e também quando quase avancei o sinal naquele cruzamento! E mais: fiquei refletindo que se eu estivesse com a Mille, no lance que eu espirrei para fora da estrada eu certamente teria capotado, por causa do carro ser mais alto do que a picapinha. Seria a Mille um anjo da guarda, he, he, he...???

Sei que depois deste lance, não ouvi mais aquela buzina. Nem parecida.

Passados os dias, quando voltei para Petrolina, não identifiquei o local onde aconteceu o lance do burro. As paisagens são muito parecidas! E passei pelo local e nem me dei conta. Já em Petrolina, quando fui entregar o carro, perguntei pela Mille. E o rapaz disse que ela estava lá. Ficou alugada duas vezes mas já estava lá de novo. Perguntei pelo problema da buzina e ele disse que naquele dia que eu estive lá ela ainda disparou a buzina sozinha mais algumas vezes. Mas que depois parou e eles até esqueceram de ver qual era o problema. E não aconteceu mais.

Sei que vai parecer babaquice, mas juro, eu pedi para ver a Mille. Disfarcei, dando a entender que queria apenas avaliar se da próxima vez que precisasse, pegaria a Mille ou a Strada mesmo. Mas na verdade eu queria era olhar para ela de novo. E o camarada foi lá comigo. E lá estava ela, quieta. Lá no íntimo, eu imaginei que talvez ela piscasse o farol e desse uma buzinada. Mas não. Quieta ela estava, quieta ela ficou. Troquei meia dúzia de palavras com o cara e fomos saindo. Mas de novo vai parecer babaquice, eu sei, mas eu fiz questão de antes de me afastar dela, dar dois tapinhas no lado do pára-lama e olhando pra ela, falar "valeu, obrigado!". Fiz de modo que o cara pensasse que fosse com ele. Mas na verdade, juro, eu falei foi com o carro mesmo!


Alexandre Faccion - Rio de Janeiro - RJ - [email protected]