O sopro

Conto enviado por: D.C.Amaral - SP - São José dos Campos
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Não havia pretensão de conseguir nada a não ser seu próprio fim, a morte como lhe é cabida, sem rodeios ou enfoques, só a morte. Numa auto-análise, se via torpe, deformado, monstruosamente deformado, algo maligno era seu reflexo no retrovisor da motocicleta. Mas tão brando era seu pensamento que conseguira, com as mãos limpas, esvair o último suspiro de ar daquela frágil moça. Tão rude foi sua abordagem que Munique nem percebera que a intenção daquele jovem motoqueiro não era apenas lhe desferir palavras obscenas, mas sim tomar-lhe algo mais sagrado que sua moral, sua vida!

O crepúsculo do dia rebatia o orvalho claro criando pequenos prismas como ilusões feitas por um mágico em festa de criança; a moça bem vestida, teve seu caminho obstruído por um muro caído na calçada (resultado de uma forte chuva no dia anterior) e foi obrigada a atravessar a rua de maneira a se deixar visualizar pelo seu perseguidor (que ainda não o era). Com jeito de menina e corpo de mulher, ela andava com suspeita, porém num dia calmo e quente, nada poderia ser tão normal. Ao fundo, um barulho agudo de escapamento esportivo crescia em seus ouvidos, mas se tratando de uma capital, era tão comum como os emaranhados de prédios riscando o céu cinza.

Munique apertava o passo para chegar ao escritório. Já havia andado duas quadras de sua casa e o escritório ficava a exatas três quadras. Barulho, barulho, barulho e um rimbolante brummm; estava uma grosseira motocicleta em cima da calçada a bloquear seu caminho tal como o muro tombado uma quadra atrás.

O motoqueiro retira de dentro da jaqueta uma pistola negra e aponta para a perna da garota que tentara gritar, mas a tentativa fora abafada por um golpe covarde da coronha da empunhada pistola, Munique sentiu seu rosto arder em brasa como se a queimassem de dentro para fora. Seu olho esquerdo se enchera de lágrimas pelo bruto golpe, seu olho direito se enchera de lágrimas de desespero! Suas pernas bambeavam, lutavam e relutavam para sustentar seu peso, que não era muito, era uma moça magra, daquelas que os homens chamam de falsas magras pelas curvas corretamente postas como a de um artificial manequim.

Um carro passa estalando um pequeno galho caído no meio fio a poucos metros do casal na calçada. Mas o rítmico som do motor do carro nem ao menos diminuiu demonstrando que o motorista não os notara. O rapaz pede para que lhe entregue a bolsa e ela, num gesto impensado, deixa-a cair no chão como se a mesma pesasse cem quilos. Ele cerrou os olhos e a fitou com crueldade e lhe ordenou que pegasse a bolsa e lhe entregasse usando as palavras: "puta, pegue a merda desta bolsa ou te apago aqui mesmo, sua cadela".

Um apito alto se instalara no ar indicando que já eram oito horas e era tempo de labuta em uma pequena fábrica de clipes perto dali. Abafando o som oco da coronhada na nuca de Munique, seus cabelos negros se escureceram ainda mais com o grosso fluido que tingia toda blusa de cetim branco da cor mais púrpura, vermelho sangue!

As feições do rapaz estavam completamente desfiguradas, nem sequer assemelhava-se a um ser humano e sim a algum predador que caçara sua presa. A moça, completamente sem forças, não resistiu, apenas se entregou à força da gravidade e caiu aos pés do seu agressor. A mente tentava raciocinar, mas não conseguia, pois ela se sentia acordada sem conseguir abrir os olhos, com medo de tentar abri-los. Tinha medo de lutar, pois sabia que seria em vão.

Munique agora estava dentro de um terreno baldio. Havia muito mato e sacos plásticos de lixo jogados por vizinhos mal educados e ela sentiu seus ombros chacoalharem como se alguém a quisesse trazer de volta à realidade. Abriu apenas um pouco seus olhos, com dificuldade, pois estavam semi colados pelas lágrimas secas, vira um vulto a sua frente, seu corpo pesara toneladas naquele momento. O sol lhe queimava a face e ressecava sua boca. O monstro voltara e fitara sua vítima deitada entre terra, sujeira e mato. Ele via o formato dos seios cuidadosamente guardados em um belo soutien de rendas que transparecia com perfeição à camisa de cetim branca manchada de rubro. Ela notara a presença dele e ofegou sua respiração ao sentir medo e insegurança. Seu peito subia e descia quando seus pulmões se enchiam de ar estufando o tórax. Munique sentiu-o chegando e ajoelhando ao lado de sua cintura e sentando em suas coxas. Com um rude gesto ele rasga sua camisa e arrebenta uma das alças do soutien; a respiração fica ainda mais forte, tenta gritar, mas o som não sai. O pavor, o medo e a incompreensão abafam qualquer tentativa de grito e ela sente aquelas mãos com profundo nojo passearem em seus seios que agora estavam à mostra a apontar para o céu. Ele tira a camisa e Munique sente um forte odor de suor vindo daquele sujeito, um "cc" demoníaco que jamais sentira em sua vida; náuseas e ânsias tomaram conta de seu estômago e o café da manhã regurgitou num jato para fora como se fosse um bêbado vomitando num beco. O monstro que ria se fechou com raiva e desferiu-lhe um murro na testa como repreensão do gesto dela, como se ela o tivera feito de propósito. Ela não sentiu dor, apenas a pancada.

Nuvens escuras obstruíam o sol forte da manhã indicando uma possível chuva de verão; uma forte rajada de vento levantou várias folhas secas, em redemoinho, lançando-as às costas nuas do rapaz ensandecido. Um pequeno monte de poeira que acompanhava as folhas subiu um pouco mais atingindo em cheio o rosto cegando-o com irritação. Munique percebeu que ele soltara seus seios e abriu os olhos vendo que ele levara suas mãos aos olhos. Ela escutava tudo sem nexo, como se todos os barulhos estivessem bem baixo e em ritmo lento como uma fita em um rádio - gravador com as pilhas fracas. Isso de certo a confortava, pois seu semblante melhorara a fisionomia como se já não entendesse a situação. Por um instante parecia até sorrir e foi exatamente o que fez, sorriu confortavelmente entorpecida, não sentia dor, apenas uma sensação irracional de alívio insano. O motoqueiro ao terminar de limpar seus olhos flagrou-a rindo; Indignado e curioso, ele não entendeu porque ela ria, ele a maltratara e ela ria, como poderia ser? Ele pensava e não era de seu feitio pensar, então esbofeteou sua face com a mão aberta. O rosto da moça se deslocou de um lado para o outro como um joão-bobo e ela gargalhou alto desta vez. Suas mãos não tinham forças, mas se tivessem estariam segurando a sua barriga para conter os espasmos musculares de uma boa gargalhada. O rosto deixava de ser cara e ele entendia menos ainda; ele estava sob efeito de cocaína, mas tinha certeza de que aquilo não era uma viagem, era real, a "hiena ria". Fechou a mão pronto a socar-lhe a face e ela gargalhou ainda mais alto, uma risada gostosa e compulsiva daquelas que contagiam e convidam a qualquer um a rir junto sem ao menos saber o motivo. Ele ao invés de bater, segurou-a pelo pescoço com as duas mãozonas em volta asfixiando-a e ela continuava a rir. Seus olhos lacrimejavam em função da risada e ela começava a tossir em espasmos entre os risos que não cessavam por nada. A tonalidade de seu rosto mudara de sua cor rosada para roxo, já não tinha ar nos pulmões para desferir mais risadas, mas seu semblante continuava feliz e com um sorriso largo estampado na face, seu nariz começou a sangrar em virtude do grande acúmulo de sangue no cérebro fazendo duas veias estourarem com a pressão.

Os dedos do monstro enfim se encontraram na nuca de Munique que desfalecera roxa com várias veias saltadas na testa e muito sangue no nariz e boca que, por sua vez, estava escancarada com um largo sorriso ininteligível e misterioso aos olhos de seu assassino. Ele corre, agora amedrontado, sem entender o que de fato acontecera. Como era possível alguém morrer sorrindo? Como? Como?

Subiu na moto como se estivesse roubando-a (na verdade, já a havia roubado); ligou-a e a acelerou soltando a embreagem de súbito e com violência a moto guinou à frente apenas com o pneu traseiro no solo arremessando seu corpo ao chão enquanto assistia a sua motocicleta partir, desenfreadamente, à porta de um carro que estava estacionado do outro lado da rua. Meio tonto e ainda confuso se levanta e olha a moto deitada de lado, ainda funcionando no chão com um barulho irregular de uma combustão imperfeita como um moribundo quase nas últimas implorando para morrer. Ele caminha até ela mancando e se abaixa para levantá-la sentindo uma forte dor nas costas; leva sua mão às costas e descobre um enorme buraco no exato momento em que sente dificuldade para respirar; olha sua mão ensangüentada e cospe um muco de sangue no chão. Enquanto tosse, ele nota que há muito óleo próximo à moto e ouve um tiritar seco da corrente da moto parando bruscamente sua roda traseira quando o motor morre.

Do outro lado da rua se aproxima uma bela moça usando saia, uma blusa de cetim branca transparente e um lenço em volta do pescoço. O infeliz a olha e arregala os olhos; era Munique, a moça que ele matara a pouco. Instintivamente ele leva sua mão à cintura em busca de sua arma e, ao invés de encontra-la, ele acha apenas um buraco de carne mole e gosmenta. Quando caíra de costas no chão, a coronha se virou e afundou em sua carne quebrando-lhe duas costelas e furando o pulmão. A moça passa por ele gargalhando e apontando o dedo indicador à sua face. Ria tão alto que era ensurdecedor aos seus ouvidos. Quando tentou gritar, o ar que ele golfou lhe abalroou o pulmão como uma pedra de cimento e ele caiu de joelhos implorando o oxigênio que seu corpo rejeitara e olhou para cima como se buscasse alguma resposta e, ao invés disto havia apenas a moça, o fantasma de Munique encarando-o com um semblante alegre e às gargalhadas apontando-o. Ele engatinha feito criança na direção de onde fora arremessado pela moto e visualiza sua arma.

A poucos metros dali, num quarteirão paralelo, uma viatura da polícia militar sem o giroflex ( isto indica que é carro de oficial) está parado num semáforo com o comandante do 3º batalhão de São Paulo e seu motorista, um simples cabo. O monstro, que agora estava mais parecendo um cachorro atropelado alcançou a arma e se virou para a moça apontando onde ela estava. Mas não havia nada lá. Num segundo estava, noutro não! A gargalhada se deu ainda mais alta atrás dele e ele sem pestanejar se virou atirando acertando apenas os vidros de um outro carro que estava estacionado; mais uma vez ele ouviu o ensurdecedor som da risada e atirou para trás por cima do ombro; por reflexo rompendo-lhe quase que toda a orelha com o projétil da pistola. O comandante olha ao retrovisor do motorista e encontra os olhos do cabo Ramos no mesmo segundo em que escuta os primeiros tiros e eleva as sobrancelhas quando escuta o último. Ele diz ao cabo para que avisasse pelo rádio e fosse averiguar com cautela, pois ele era um comandante mas ainda era um policial.

Enquanto a viatura guinava em busca dos tiros, o atirador gritava não de dor, mas de incompreensão, com a mão esquerda sob o que sobrara da orelha. Ele procurava ao seu redor seu alvo, mas ela desaparecera, porém a gargalhada ainda era ensurdecedora compartilhando o zumbido que ficou em função do tiro. O cabo Ramos avista um rapaz muito ensangüentado de joelhos no meio da rua e pára a viatura a uns quinze metros, quando percebe que ele segura uma pistola. - Comandante, o que o senhor quer que eu faça? - Ramos, desça do carro e observe-o sem deixar que ele te note. Ele deve estar muito louco, drogado ou coisa assim; olha a cara dele, o que ele procura? Vai lá e observe. Ramos sai do veículo oficial e se esgueira entre os carros estacionados se aproximando do meliante tingido de rubro.

Seria alucinação? Pensava que não, mas sua corroída mente continuava a escutar os risos insanos e contentes da falecida e estrangulada Munique. Girava o corpo, girava o pescoço, já não tinha mais forças, o ar explodia dentro de si sempre que tentava respirar. O cabo Ramos percebia isto e achou melhor não intervir observando o que aconteceria; sabia que ou ele desmaiaria em virtude do enorme buraco em suas costas ou apenas cairia morto, estava muito ferido, mortalmente ferido, mas ainda era um risco à sociedade, ainda estava armado e ainda vivo! Tentou levantar e caiu de novo, agora apoiara em vão pois sua mão não agüentou seu peso e arremeteu com violência o fronte de sua testa ao solo rude e irregular do asfalto que já ardia com o sol matinal.

O comandante deixou o veículo quando percebeu que o rapaz caíra e foi ver de perto do que se tratava a pitoresca cena que aquele jovem armado proporcionava a seus olhos. Neste instante a arma ainda presa à mão do marginal se movia como em câmera lenta para frente de sua cabeça dando a impressão de suicídio. Um forte som tipo "uuuo uuuo uuuo" se funde ao som da metrópole se aproximando daquela rua no sentido inverso da onde se localizava a viatura oficial do comandante e aparece rugindo como um feroz animal uma viatura de assalto dobrando a esquina em direção ao corpo no chão. Param a mais ou menos dois metros do corpo; da perspectiva do comandante a viatura iria atropelar o corpo sem piedade como se não o tivessem visto. Mas não. Param rente, mas não atropelam. O comandante se aproxima ainda mais guiado por uma mórbida curiosidade acompanhado pelo seu motorista com semelhante curiosidade e olham o rapaz de perto agora, tão perto que era possível ver um pedaço da costela emaranhada em cubos de carnes arroxeadas que brotavam do orifício. A arma, ainda em câmera lenta, se deslocava sem a percepção dos astutos olhos de polícia dos homens com diferentes patentes que o observavam.

O monstro acuado escuta mais uma vez uma gargalhada infernal, não apenas uma, mais umas quinze juntas; ele tinha a impressão de que havia quinze moças estranguladas e mortinhas da silva dentro de sua cabeça rindo ao mesmo tempo. Ele só as ouvia, não as via, mas por um instante ele poderia jurar que uma delas estava a sua frente, exatamente a sua frente. Abriu os olhos e enxergou duas olhando-o e gargalhando e uma delas o apontava como se ele fosse uma aberração que na verdade, o era. Policiais de armas em punho berravam para que largasse a arma, mas a ignorância imperava e o rapaz sem uma orelha não os ouvia, apenas levantava a mão trêmula e mirava a pistola desajeitadamente para o comandante que, nesta hora, parecia feito de cera, pois a coloração de sua cútis mudou de morena para branco-vela em segundos. Um opaco som acompanhado de um trovão rasgava o dia, era um aglomerado de sons que podiam ser ouvidos a quilômetros. A pistola negra manchada de sangue e com farelos de carne teve seu cão acionado proporcionando sua função na espoleta, na pólvora e no projétil que avançou até o peito do comandante derrubando-o para trás nos braços do cabo Ramos que também fora atingido pelo mesmo projétil que ricocheteara numa das costelas do comandante acertando-o no braço. Cinco policiais que apontavam as armas ao corpo no chão e pediam para que largasse a arma, fuzilaram-no por reflexo, ao escutarem o tiro. Uma carabina calibre 12, dois revolveres calibre 38, uma pistolas 380 /9mm e uma metralhadora semi-automática foram acionadas num ato concomitante até sua última munição. Dividiram o corpo do rapaz em dois na altura da cintura, e se tornou apenas um reles pedaço de carne que mostrava que aquelas partes foram juntas um dia. O comandante morrera no hospital.