O cão vigia

Conto enviado por: Amanda L. - SP - Cajuru

Já era tarde, quase dez horas, e Sandra estava acabando de sair da casa da amiga dela, Priscila. A sua mãe tinha lhe falado para chegar em casa às dez horas, e se ela saísse agora, ainda dava para chegar antes das dez.

Quando ela estava saindo da casa ela ouviu a mãe de Priscila dizer "Sandra, espera um pouco que eu só vou colocar um casaco e já levo você. Eu não acho bom você ficar andando no escuro de noite."

"Está tudo bem" Sandra respondeu, "Eu não moro muito longe. Eu posso cortar caminho pelos campos de trigo e chegar mais rápido do que de carro"

"Tudo bem então. Mas tenha cuidado Sandra, e me ligue assim que chegar em casa"

"Ta bom!"

Sandra se apressou para dizer adeus à Priscila e abriu a porta para ir embora. Então ela ouviu uma voz sepulcral dizer "Cuidado com o cão vigia." Ela se virou e viu o avô de Priscila sentado em uma cadeira de balanço do lado de fora da casa, na varanda.

"Com o quê?" ela perguntou.

"Com o cão vigia." o velho respondeu. "Eu ouvi ele hoje a noite. Os uivos dele, quando ele sai para caçar. Cuidado com o cão vigia!"

"Pai!" falou a mãe de Priscila da porta "Deixa a menina em paz! Não assusta ela com as suas histórias."

"Apenas tenha cuidado!" ele sussurrou, piscando para ela, enquanto a porta se fechava.

"Que coisa estranha", Sandra pensou. Mas o avô da Priscila era meio estranho. Ele era índio, e vivia contando um monte de lendas e histórias estranhas. O pai da Priscila falava que ele tinha Alzheimer e que contava as suas histórias porque era a única coisa que ele conseguia lembrar. Mas Sandra não tinha certeza disso. Ele parecia ainda ser muito são e saber do que falava, apesar de ter um cheiro estranho e as vezes fazer coisas estranhas, como misturar leite com suco de laranja. "Eh" Sandra pensou "Melhor não pensar nessas coisas e simplesmente ir para casa."

Ela saiu da varanda e começou a trilhar o caminho de terra que saia da casa. Então ela ouviu um uivo vindo do campo de trigo à esquerda dela. "Cuidado com o cão vigia!" ela ouviu a voz do avô de Priscila dizer. "Ele é apenas um velho senil." ela falou para ela mesma. "Ele não sabe de nada."

Então ela entrou no campo de trigo e começou a atravessa-lo. Agora já era bem tarde. Era uma noite escura de lua nova. O céu estava nublado, escondendo todas as estrelas, menos as mais brilhantes. Um vento incessante soprava pelo trigo, parecendo o sussurro de milhares de vozes. Ela podia ver as luzes da casa dela, do outro lado do gigantesco campo, e isso trouxe um pouco de conforto para ela. Havia chovido naquela semana, deixando o caminho um pouco lamacento, mas nada que fazia ela diminuir o passo. Não muito, pelo menos.

Ela andou pelas fileiras de trigo, ouvindo a lama grudar nos seus sapatos. Sclosh. Sclush! Sclosh. Sclush! Sclosh. Sclush! O som fazia ela rir. Ela começou a andar mais rápido então. Squish-scush-squish-scush-squish-scush! Ela começou a se divertir com aquele barulho, então começou a cantar. "Se eu pudesse escolher o que eu seria" Sclosh. Sclush! "Então eu escolheria" Sclosh. Sclush! "Um passari-" Outro uivo veio voando pelo vento na sua direção. A música morreu nos seus lábios, e por um instante ela ficou completamente parada. O uivo veio de novo, baixo e num tom lamurioso, como se o animal que estivesse fazendo aquilo estivesse sentindo muita dor. Então, um terceiro uivo. Esse veio muito mais de perto, como se o cachorro estivesse do outro lado do campo.

Sandra estava começando a ficar assustada agora. Ela tinha medo de cachorros, e esse parecia ser grande. Ela baixou a cabeça e começou a andar rápido pelo campo, já não mais se divertindo com o som da lama sob os seus pés.

Parecia que o campo tinha crescido. Não importa por quanto tempo ela tivesse andado ou o quão depressa, não parecia que ela estava se aproximando de casa. As nuvens estavam ficando mais carregadas e mais escuras, e de vez em quando um trovão ou outro se fazia ouvir ao longe. O vento começou a ficar mais forte, sussurrando e gemendo pelas fileiras de trigo. estava começando a ficar frio. Sandra vestiu o seu pequeno casaco rosa, e colocou o capuz, apertando a cordinha dele am baixo do queixo.

De repente um raio iluminou completamente todo o campo. Sandra pulou de susto. Ela se abraçou e tentou andar mais rápido ainda pela lama. Então ela ouviu um outro uivo. Agora não parecia ser de um animal ferido ou triste. Parecia ser de um animal bravo, e parecia estar perto. Muito perto. Um trovão tremeu o chão e Sandra gritou. Ela já estava completamente apavorada agora. Ela odiava tempestades quase quanto odiava cachorros.

Outro uivo ecoou pelo campo, parecendo vir quase do lado dela. O vendo já estava bem forte. Parecia um coral de vozes raivosas avisando sobre o perigo. Outro uivo, alto, bravo. Sandra ouviu o som de pasta sendo esmagada vindo do lado dela, o mesmo som que ela ouvia quando pisava na lama. O vento gritava para ela "Cuidado com o cão vigia! Cuidado Sandra! O cão vigia! Cuidado!"

Sandra começou a correr. O barulho da lama sendo pisada vinha atrás dela agora, perseguindo ela. "Cuidado! Cuidado!" O vento dizia. Agora o uivo parecia vir de todos os lados, cercando a garota assustada. O raio iluminava e o trovão vibrava e o vento gritava "O cão vigia! O cão vigia! Cuidado!"

De repente o pé de Sandra afundou na lama e ela caiu de joelhos no chão. Enquanto ela lutava para se levantar, ela ouviu um rosnado vindo da frente dela. Ela parou de se mexer e ficou ouvindo. O rosnado veio de novo. Ela olhou entre o trigo e viu um par de grandes e brilhantes olhos vermelhos, profundos e ameaçadores. Sandra ficou tão assustada que não podia se mexer. Ela não conseguia gritar. Cada suspiro descia dolorosamente por sua garganta e o seu estomago parecia estar cheio de gelo.

Ela ouviu o trigo se mexer. Um raio iluminou o campo de trigo e, nesse instante, ela pode ver o que carregava aqueles olhos vermelhos. O maior e mais negro cachorro que ela já tinha visto na vida, e ele estava andando na direção dela. O seu pelo era longo e embaraçado, e os seus dentes eram bem maiores do que qualquer dente tinha o direito de ser.

De repente, aquela grande besta latiu e pulou no ar, na direção dela. Sandra gritou e se encolheu no chão. O cachorro passou por cima dela e caiu em algo que fez um som abafado. Sandra ouviu um grito de surpresa e se virou para ver o que tinha acontecido. O cachorro tinha prendido no chão um homem alto e musculoso. Um raio refletiu em uma faca que ele segurava com a mão direita. Um outro raio veio, e Sandra viu o cachorro colocar os seus massivos caninos na garganta do homem. Então ele parou e olhou na direção dela, rosnando, com saliva pingando dos seus dentes. Ela simplesmente olhou para o outro lado. A essa altura ela estava assustada demais para fazer alguma coisa. Os gritos do homem se silenciaram de repente.

Sandra ouviu o cachorro chegando perto dela, vindo por trás. "O que ele está fazendo?" ela pensou. O cachorro mordeu a parte de trás do casaco dela com cuidado e puxou ela até ela ficar em pé. Então ele foi embora por um momento. Quando voltou, tinha o outro pé do sapato dela na boca. Ele soltou aos pés dela e esperou enquanto ela o calçava.

"Bom cachorro" ela sussurrou nervosa. O cachorro começou a andar na direção da casa de Sandra. Agora que ele estava do lado dela, ela podia ver que era muito maior do que ela tinha imaginado. A sua enorme cabeça quase chegava no ombro dela e os seus pés eram quase maiores que os dela. O cachorro a guiou por todo o caminho, até chegar na casa dela, acompanhando o seu passo. Ela chegou a tropeçar uma hora e o cachorro se enfiou em baixo dela, aparando a sua queda.

Ela viu uma luz se mexendo à sua frente e ouviu o seu pai gritando "Sandra! Sandra! Cadê você?"

"Pai!" ela falou chorando.

Ela correu na direção do pai dela e ele a pegou nos braços. Ela estava chorando feito um bebê, mas não ligava.

"Sandra, o que aconteceu?"

"Ai pai," ela falou soluçando com o choro, "Um homem tentou me machucar com uma faca, mas esse cachorro me salvou!" e ela apontou para trás.

"Que cachorro, querida?"

Sandra se virou. O cachorro não estava mais lá. Tinha sumido.

"Eu acho melhor a gente entrar em casa." o pai dela falou.

Ele a levou para dentro e contou para a mãe dela o que tinha acontecido. Então a mãe dela deu um banho nela, tirou a temperatura dela e a colocou na cama. Um pouco antes de Sandra adormecer, ela ouviu um uivo lamentoso na distancia, mas ele não assustava mais ela.

Na manha seguinte ela acordou com os pais dela conversando na sala. "A polícia encontrou o corpo de um louco que fugiu do hospício no campo de trigo." o pai dela falou. "Ele tinha uma faca com ele. Deve ter sido o homem que a Sandra viu na noite passada."

"Santa mãe de Deus!" a mãe dela falou, "Não vamos mais deixar ela voltar para casa pelo campo. A mãe da Priscila ligou essa manhã e estava se sentindo péssima. Levou quase dez minutos para acalmar ela."

"Uma coisa que é estranha," o pai dela continuou, "A garganta do homem foi completamente retalhada. As marcas de dentes era enormes!"

"A Sandra não falou que viu um cachorro na noite passada?" a mãe dela perguntou.

"Ah bem," o pai dela falou, "O cachorro teria que ser do tamanho de um pônei para ter dentes daquele tamanho. Simplesmente não faz sentido."

Sandra ouviu aquilo tudo e sorriu. Ela sabe o que tinha feito aquelas marcas. Ela se virou e voltou a dormir.

Sandra nunca mais andou pelos campos de trigo à noite. Ela nunca esqueceu o cachorro e o cachorro nunca esqueceu ela. As vezes, quando está tarde e ela está sozinha e com medo, um uivo baixo vem carregado pelo vento. O uivo do cão vigia.