A vida é mesmo cheia de surpresas

Conto enviado por: Jaqueline Cristina

A vida é mesmo cheia de surpresas. Tinha terminado um noivado de quatro anos recentemente, pois afinal descobri que apesar de amar muito o João, nosso relacionamento virou rotina. E depois de tanto anos, acabei não me vendo casada com ele, tendo filhos, enfim, ele é um grande amigo, companheiro, mas não era o grande amor da minha vida.

A solidão mesmo é uma coisa estanha, e apesar dos anos de noivado e mais uns dois de namoro, eu vejo hoje que estive completamente só, meu íntimo nunca se apaixonou de verdade, e acho que meu caso com ele durou tanto tempo por acomodamento mesmo. Apesar de coitado, o João não se conformou a princípio, mas acho que no fundo no fundo, ele também estava sozinho.

Decidida a viver nova vida, prestei vestibular e me mudei de cidade. É estranho sair de casa aos 28 anos, pelo menos eu sou dez anos mais velha que a maioria dos meus colegas de classe, mas só o ar da cidade nova me rejuvenesceu, e de certa forma parece eu apaguei quase esse tempo toda da minha mente.

Aluguei uma casa próxima à faculdade, na rua de trás do cemitério, onde era só descer a rua e em menos de cinco minutos a pé eu já estava praticamente dentro da sala de aula. Mas sabe como são as coisas, só de passar na frente do cemitério, muita gente acha que o local é ruim. Pelo contrário, tem até um barzinho country na esquina. Apesar do andar de cima do bar esteja muito velho, as pinturas do primeiro andar estão desbotadas e as janelas escuras e cobertas de poeira.

A única coisa ruim, é que tenho que esperar o bar fechar e o povo todo ir embora, pois na minha situação, eu sempre apelo para o sobrenatural, afinal na minha idade, e depois de tantos anos sem estudar, eu pedi "apoio moral" para minhas entidades, e um despachozinho na esquina sempre faz bem, não é? Afinal a macumba é para mim mesma, he he he!

Estão a coisa certa noite ficou um tanto sinistra, voltei da aula e já tinha deixado meu despacho pronto há algum dia, e era só esperar o bar fechar e dar uma corridinha lá, deixar a gamela, acender a vela, rezar e voltar correndo para casa, antes que alguém viesse me encher o saco, me chamando de satanista ou coisa que valha. Não que eu ligue para o que pensam da minha vida, eu to nem aí! Mas, como sou desconhecida, não quero arrumar encrenca por bobeira com algum vizinho ignorante, afinal eu sou de fora, e moro sozinha, e nunca se sabe se algum dia eu precisarei de ajuda deles.

Mas, eu fiquei esperando, até tudo se silenciar. Até ouvi e vi quando o dono ligou o carro e foi embora e não havia ninguém na rua; até porque por ser próxima do cemitério, eu creio que depois de certas horas, os próprios moradores não saem na rua.

Quando tudo se silenciou, esperei alguns minutos para me certificar, peguei meus trecos e saí. Mas, quando eu já estava quase na esquina escutei uma viola caipira tocando... Tocava baixo uma melodia muito bonita, de acordes agudos, mas apesar de bela era um tanto triste. Eu parei, e pensei: "Que saco! Ainda estão abertos". Mas por frações de segundos eu vi que o bar já estava fechado e tudo estava escuro.

"Ah, deve ser algum vizinho insone tocando ou ouvindo música". Mas, a princípio, todas as casas estavam com as luzes apagadas, e eu não ia ficar dando bobeira sozinha na rua deserta numa hora daquelas...

"Seja o Deus quiser!" Corri até a esquina, fiz o que tinha me proposto, rapidamente, mas não sem antes focar minha fé, e conforme eu meditava, a musica continuava a tocar, e por mais estranho que seja não me incomodava; pelo contrário, de certa forma me tocava direto ao coração.

Encerrei minha mandinga, e quando me levantei, percebi que tinha alguém na janela do andar abandonado acima do bar. "Putz, que cara chato, além de ser relaxadão com sua própria casa, porco pra caramba, ainda é enxerido com a vida dos outros!"

Mas aí eu saquei: "ele fica no escuro mesmo acho que só me esperando para me pegar no flagra!" Como se eu me importasse com a opinião de um sujeito estranho. Mas, será que ele já me viu outras vezes? Será que ele sabe que são as pessoas que depositam seus despachos na encruzilhada do cemitério? Ah, grande coisa, lá é lugar destas coisas mesmo, e tem gente que acende vela, coloca despachos mais fortes que os meus, que só tem flores, fitas, mel, cristais, pipoca...; eu moro num país livre e não estou fazendo nada de errado, to pedindo força e perseverança para concluir com êxito meu curso, oras...

Voltei para casa e continuei a ouvir a musica noite inteira. Dormi e acordei, a musica tocava dentro de minha cabeça, semelhante àqueles ruídos horríveis que o povo cujo cantor além de desafinar, não canta, late (mil perdões, doces canídeos) e urra impropérios e palavrões naquilo que a molecada chama de música do povão. Mas eu acho que estou velha mesmo, pois no meu tempo música de protesto era o Renato Russo cantando "Geração Coca-cola", o Dinho cantando "Fátima" ou o próprio Cazuza. Mas nenhum deles tocava uns acordes irritantes, nem falavam que iam matar ninguém, tirar sarro, ou contar como eles procediam nas suas horas íntimas. Nem nunca mexi minhas nádegas, achando lindo ser chamada de vadia ou prostituta.

Mas ao contrário das músicas ruins, àquela do violeiro caipira não me incomodava. Ou melhor, me incomodava sim, porque não consegui me concentrar o dia inteiro, aqueles doces acordes ficaram tocando na minha mente todo o tempo.

Aquilo atrapalhou minha concentração o trabalho, e nem consegui ficar na aula, voltei para casa sem antes dar uma passadinha no bar de música sertaneja, à procura de informações acerca do morador esquisito. Sentei no balcão, pedi uma Cuba Libre, e fiquei tentando puxar conversa com o barman. Por sorte, era dia de trocar o chopp semanal e já tinham acabado com os barris, e o bar já estava quase vazio.

Conversa vai, conversa vem, e a garçonete que estava desocupada, acabou ficando conversando comigo. Eu não sabia que a garçonete era a própria dona, por isso que parecia a moça mais explorada, chegava primeiro e ia embora por último do carro do dono, era a própria. Ficamos amigas, e foi com prazer que descobri uma companheira de infortúnios amorosos, e adeptas de crenças religiosas afins. Afinal ela tinha uma enorme estátua de Nossa Senhora Aparecida num oratório, e não era só um adereço temático decorativo, mas a conversa estava tão boa que acabei me esquecendo de pedir informações do morador de cima.

Com o passar dos dias, eu acordava ouvindo aquela música triste, e fiquei intrigada, afinal esquisitices também tem limite, e como se não bastasse a imundice do apartamento, ainda ouvir um música só, e ainda por toda a madrugada! Mas apesar da situação estranha, eu gostava de ouvir aquela música, não sei o motivo, mas acabei por viver durante o dia no "piloto automático", pois eu ficava ansiosa de ouvir aquela música pela noite inteira. Dormir e acordar, a música só parava lá pelas cinco da madrugada. E eu já sabia exatamente a hora que começava: 01h17min exatamente.

Era só o bar fechar lá pela meia-noite e meia pontualmente, dar mais uns 15 minutos para fechar tudo e todo mundo ir embora. Acho que só aos sábados que o bar ficava aberto pela madrugada, mas como tinha missa na igreja do cemitério domingo às seis da manhã, aquele dia era o único dia de movimento na rua, e infelizmente o único dia que não dava para escutar minha viola caipira e seus acordes repetitivos.

Conforme as aulas ficavam mais puxadas, eu não tinha tempo de preparar minhas mandingas, e eu andava meio cansada até porque não dormia mais a noite toda. E no máximo, tinha tempo de dar uma corrida no bar, beber um choppinho com minha amiga, às vezes ir a alguma festa com meus colegas de classe. Mas eram as madrugadas meu tempo favorito. Se pudesse ou conseguisse, ficaria acordada a noite inteira.

Então certa madrugada, acabei fazendo uma coisa insana: vesti-me de vermelho, me maquiei e saí para ir até a esquina dar uma de joana-sem-braço, como quem não quer nada, acendi uma vela rosa e uma vareta de incenso. Saí carregando uma rosa vermelha também, e fiquei segurando olhando para a janela empoeirada do outro lado da rua.

O estranho que aquela noite que a música não tocou. Acho que o tal sujeito estava me esperando, e tive a certeza de que a música era para mim. Pois no silencio, vi o moço de chapéu de boiadeiro e camisa xadrez em pé na janela olhando para mim.

Eu gelei, pela primeira vez na vida tive certeza de que estava apaixonada de verdade. Pela primeira vez na vida, eu que iria me formar professora de matemática, e mantinha minha vida na mais perfeita organização exata de tudo; tinha perdido a cabeça por um homem desconhecido. Ele poderia ser esquisito, recluso, meio porção e relaxado, mas eu o amava. Não saberia mais viver sem ouvir aquela música.

Ele e olhava com olhos tristes, mas parece que mesmo no escuro tendo como iluminação apenas a luz do poste, eu notei um sorriso tímido vindo para mim. Fiquei nem sei por quanto tempo parada olhando para ele, e só percebi o tempo passar quando já estava amanhecendo e ele desapareceu. Achei que ele iria descer a abrir a porta, mas nada aconteceu. Fiquei um pouco desapontada, mas vai ver que ele é muito tímido. Ou eu parecia ser oferecida demais, e acabei o assustando. Sei lá, vai ver que é o vestido vermelho provocante, ou as macumbas, ele deve ter medo de mulheres feiticeiras.

É estranho, mas o que sei dos homens, ninguém iria deixar uma mulher linda parada sozinha na rua a noite inteira sem ir ter com ela. Mas sei lá, no campo de suas esquisitices, vai saber, até porque a mente masculina é um tanto confusa. Previsível, mas confusa.

Mas depois disto o caldo desandou de vez, nunca mais ouvi a música. Mas mesmo intrigada, triste e apaixonada, me contive para não fazer outra sandice daquelas de ficar me oferecendo na rua tarde da noite. Eu só podia estar ficando louca mesmo. Não voltei lá por dias, voltava para casa, olhava para dentro, a casa toda escura, mas eu passava direto, fingindo que ignorava o apartamento.

O tempo passou, e eu guardei dentro do meu coração o sertanejo solitário da esquina, voltei a ter meu equilíbrio mental e emocional, e dei seguimento na minha vida. Então, certa noite, assim sem mais ou sem menos, acordei às 1 e dezessete e ouvi a música novamente. E de novo comecei a me sentir se descontrolando.

Mas, desta vez eu daria um jeito naquilo; eu nunca iria me descontrolar por causa de uma ilusão ou fantasia, e tinha muita coisa importante na minha vida para deixar de lado por uma paixão sem sentido.

À noite voltando da faculdade, passei no bar e intimei minha amiga garçonete-empresária sobre o morador do apartamento de cima.

Aí ela se assustou: "- Que morador? O prédio ta vazio, e eu preciso mesmo de um espaço para estocar minhas bebidas, aumentar o ponto, mas não tenho coragem de subir lá, morro de medo!"

- Por que? Lá não mora ninguém? Por acaso não foi invadido? Alguém que entrou lá sem que você saiba?

"- Não. Eu tenho as chaves, mas nunca abri aquela porta, era a casa do meu cunhado. O andar de baixo era de meu ex-marido, o prédio todo era da família dele. Mas na separação, ele e a família abriu mão do prédio sem enrosco nenhum, sem briga, e me deu de presente de mão beijada".

- Como assim? Ele nunca te deu pensão? E seus filhos?

"- Sim ele me paga pensão, aliás paga pensão para as crianças, mas depois de muita briga, e de ameaçar ele de ir para a cadeia. Ele pos obstáculo em tudo na separação de bens, no valor da mesada, mas o prédio, parecia que ele não ligava. No começo eu até estranhei, pois eu tive que vender a casa que morava para dar a parte dele. Mas como eu imaginava que iria morar no andar de cima e montar meu negócio no ponto comercial, achei ótimo a idéia dele, eu nem sabia deste imóvel, só soube disto no dia da audiência."

- Mas por que você não mora lá? Preferiu morar naquela casa dos fundos de um só quarto, no quintal da sua mãe? Você e os meninos poderiam ter um canto só de vocês. Afinal os meninos já estão grandes, e você não fica à vontade com seu namorado na sua própria casa.

Aí eu percebi que estava sendo inconveniente e pedi desculpas pela minha invasão em sua vida privada.

"- Não há nada de me pedir desculpas. Somos amigas de verdade, mas você não é daqui e nem sabe da história do irmão mais velho do meu ex-marido. Nem eu sabia disto, era um segredo vergonhoso para o machismo da família dele. Mas eu não tenho coragem de entrar lá, até porque o safado do meu ex, nem tirou as coisas do finado lá de dentro, até as roupas dele está no guarda-roupa, diz que até a viola..."

- Como assim finado? Que segredo vergonhoso?

"-Qualquer dia destes, eu te conto, em outro local, não aqui. Eu acho que falei até mais do que devia, a hora é imprópria e o local também."

Respeitando a opinião da minha amiga, deixei quieto o assunto. As eu tinha certeza de que ela tem um inquilino clandestino. Afinal, me dei conta que também minhas crenças religiosas estavam também no campo do acomodo, e que no fundo no fundo, eu tanto ia às missas, rezava o terço ou fazia meus despachos por ter feito isso desde criança. Eu nasci numa família que tinha estes hábitos, e eu por osmose acabei adquirindo também estes costumes. Mas eu sou cética demais para acreditar em algo fantasmagórico, em alguma entidade poderosa, e nem sei ao certo o que tem a ver com uma vela acesa e uma suposta ajuda a um morto. Eu hein, cada coisa! Acho melhor ser autentica e deixar as superstições infundadas de minha família de lado. Afinal, como dizia com orgulho minha vovó semi-analfabeta: "Minha Nenê vai voltar doutora! Vai ser professora, a profissão mais linda que existe!"

Aproveitei que na segunda-feira, ela não abria o bar, e era dia de fazer a faxina geral da semana. Dia que minha trabalhadora e esforçada amiga ia para tirar todas as mesas e a cadeiras do bar, e lavar tudo com esguicho d'água, creolina e dava aquela limpeza pesada, diferente da rápida desinfecção diária antes da abertura do bar. Como eu não tinha aula, aproveitei e fui ajudá-la e após a lida, convidei-a para ir à minha casa comer pizza e jogar conversa fora. Afinal assunto para mulheres tratar é o que não falta.

Comemos e bebemos à vontade, e lá pelas tantas, um tanto alteradas pela bebida, perdi a cautela e desatei a puxar o assunto de sua vida, de como abriu o bar, da separação, do seu namoro, enfim, das conversas pessoais que normalmente se fala entre amigas íntimas. E então lá pelas tantas, ela começo a falar de seu ex-marido, que veio do sul, que gostavam de cuidar do gado, que o avô de seu ex foi solado alemão na segunda guerra. Que parte da família era inda preconceituosa, mas que outra parcela que incluía seu ex-cunhado, ao contrário amava mulatas.

Logicamente me senti identificada com ele, afinal sou uma típica brasileira cujo porte físico endoidaria qualquer gringo branquelo!

"- Sabe, eu não morava nesta cidade na época. Meu ex-marido só falava do seu finado irmão mais velho das coisas boas que ele fazia. Mas nunca entrou em detalhes da morte dele, ele mudava de assunto. Eu achava que era um assunto doloroso, pois o cara era um tipo de ídolo da infância dele. Sabe aquele cara que além de bonito, era alegre, popular, gostava de crianças, era amigo de todo mundo? O tipo do homem que todo mundo achava que ele queria ser prefeito, pois em tudo que era da comunidade ele tava metido?"

- Sei. O tal arroz de festa!

"- Isso mesmo! Ele tava no carnaval, nas quermesses da igreja, nas reuniões comunitárias do bairro, na organização dos campeonatos de futebol, cantava dando show nas festas de viola caipira..."

-Hã?!

"- Dizem que ele foi o maior partido da cidade. A mulherada toda era caída por ele, mas ele se apaixonou por uma menina do orfanato. Uma mulatinha órfã que foi criada desde que nasceu. E ele esperou ela ter dezoito anos para falar para a família dele que iria se casar."

-Tá, outra história mercedes!

"Espera eu te contar tudo, mercedes é pouco, parece coisa da idade média!"

- Então conta!

"Como eu disse, o cara tava em todas. Inclusive credo, como foi criado em fazenda, sabia tocar o gado muito bem, e inventou que queria montar touro bravo. Sabe como são os Hormônio masculinos. Testosterona pura! Então ele começou a organizar entre outras coisas, um festa de rodeio para arrecadar doações para o tal orfanato. Mesmo que a menina não vivesse mais lá. Mas, eu particularmente acho que ele juntou "a fome com a vontade de comer", como estava acostumado a ter uma vida social tão ativa, foi fácil fazer o tal rodeio."

-Imagino!

"- Então imagina aquele lindo deus grego, loiro, alto dos olhos azuis..., sabia cantar, tocar, dançar, era um orador nato, trabalhador,... o contrário do traste que eu inventei de arrumar para marido!"

- Entendi, continua!

"Onde eu parei mesmo?...Ah, ta! A menina por ser de origem duvidosa, acabou sendo o motivo de uma briga em família, e com razão! A tal menina apesar e sofredora era uma bisca mesmo!"

-Como assim?

"- Tava dando o golpe nele. Ela não precisava daquilo. Já bastava ter o cara nas mãos, o objeto de desejo nas meninas de toda a cidade, ter acertado a mega sena sozinha com um cara daqueles. Ela não precisava estar apaixonada, já bastava ter sido justa, e mesmo que fosse esperta o suficiente, teria tido o cara como marido, e teria vergonha na cara para ser uma esposa de verdade. Teria o respeitado, e não perderia a chance de ter uma vida feliz"

- O que aconteceu?

" - Como eu falei, a família ainda tinha alguns indivíduos que guardavam aquela ideologia imbecil de raça pura. E a mãe dele era uma destas mulheres. Mas por mais paradoxal que seja, por mais besta que tenha sido a situação, mãe é mãe, e toda mãe quer o melhor para seus filhos! Acho que apesar de tudo, ela enxergou de fato como era a menina e não aceitou de maneira alguma o namoro deles. No início ela até acho graça pois o filho era um garanhão, e sabe como é o machismo do povo do sul?"

- O machismo toda está enraizado no povo brasileiro todo, de norte ao sul. No norte e no nordeste também, no sudeste...!

"Mas para gaúcho, a coisa é questão de integridade, de orgulho mesmo! E as mulheres também guardam um tanto de machismo, infelizmente."

- Eu sei, mas eu brigo comigo mesma quando me vejo sendo machista também.

"-Eu também, mas não vem ao caso. O fato, é que..."

E lá começam a tocar aquela música conhecida, mas desta vez ta mais lato que o normal. Minha interlocutora dá um salto, se benze, bebe mais um gole, alías engole todo o Martini, e tremendo enche de novo o copo.

"Ai me perdoa, falei demais! Vamos mudar de assunto?

- Por que?

"Ta ouvindo esta música?"

Que música? - me fiz de besta.

"Não ta ouvindo este violão? Essa música de morte?"

- Musica de morte? Eu ouço há meses esta música e parece que vem do seu bar.

" -DO MEU BAR, NÃO SENHORA!" - gritou nervosamente minha amiga.

- Calma, não precisa se alterar! Eu quis dizer que parece com as músicas que tocam no seu bar. Eu achei que fosse de lá, alguém que gostasse de tocar esta música.

" - Eu é que peço desculpas por gritar. Mas você sabe como são as coisas, eu não gosto de música sertaneja, mas fui logo ganhar a vida com um bar temático. Mas esta música não vem de lá não, tenho certeza".

- É claro que não, você está aqui, e o bar ta fechado!

" Isto é meio óbvio não? He He He!" riu um tanto desconcertada.

- Olha faz meses que ficamos amigas e desde a primeira vez que fui lá tenho uma vontade de perguntar uma coisa. Na verdade, eu já te perguntei e você já me respondeu, mas sua resposta não me foi satisfatória...

"- Não vai me dizer que você tem visto fantasmas no andar de cima?"

- Tá bom, então eu não digo!

" - Não me diz por quê?"

- Porque você acabou de me dizer pra não te dizer, ah você entendeu?!

"- Eu to com impressão de que você quer me contar alguma coisa, sua interesseira?"

- Faz tempo. Mas eu achei que iria te assustar, pois eu tenho certeza de que tem gente morando no andar e cima de seu bar. Mas você me garantiu que não, então eu deixei quieto a história...

"Não tem ninguém mesmo" Você já viu o estado de sujeira naquela porta? Dá para ver alguma coisa através da janela? Aquilo lá ta fechado há anos, e eu só subi lá uma vez quando peguei as chaves do prédio, e fui ver onde seria minha nova casa. Mas foi aí que saquei a sacanagem do meu ex. Ele me deu o imóvel de graça para se ver livre de um elefante banco. Mas nem o filho da mãe tinha coragem de subir lá e dar fim aquelas tralhas. Aquilo parou no tempo! Ta do mesmo jeito desde que o tal do Gustavo morreu. E o safado do irmãozinho caçula dele me ferrou bonito! Me deu uma casa assombrada de herança para meus filhos!"

-Agora que você começou de contar história, termine, por favor!

-"Tem certeza de que não tem mesmo algo par me contar?"

- Tenho sim algo para te falar, mas termine sua história que eu conto a minha.

"- Com essa música tocando eu não falo mas nada!"

- Tudo bem, então vamos fazer uma prece? - Deixamos a bebida de lado, abrimos a bíblia lemos um trecho do novo testamento, oramos até que a música parou.

"- Sabe, eu tenho pena deles! Tenho pena mesmo, apesar de tudo. Acho que depois da tragédia aquela família nunca mais se reestruturou. Aquilo matou minha sogra de desgosto, e vergonha e de tristeza. E creio que meu ex mesmo desconfia de todas as mulheres, apesar de por Deus, eu nunca tenha dado motivo dele de desencantar comigo. Um pena, ele ser tão inseguro!"

- O eu de fato aconteceu?

"- Então mesmo brigando com a mãe, o Gustavo levou adiante o desejo de se casar com a menina do orfanato. Ele estava mesmo cego, e ainda estava mais motivado em levar adiante a besteira do rodeio beneficente. Mas, ele se dava bem tocando gado, não montando touro bravo."

- Eu odeio rodeio!

"- Aí chegou os dias de festa, teve muito artista cantando por aqui. Teve exposição de gado, feira de artesanato, concurso de beleza, e tudo mais que geralmente se tem nestas comemorações."

- Mesmo assim continuo odiando rodeio. Eu gosto de exposição de gado, mas aqueles showzinhos imbecis são de péssimo gosto, ao vejo a menor graça do sofrimento dos pobres animais! Mesmo que o povo viva afirmando que não aconteçam maus tratos, mas eu não acredito, basta olhar para os olhos dos coitados dos touros e cavalos que a gente percebe a dor deles, a agonia, e sabe lá o que acontece aos pobres depois do espetáculo romano de quinta categoria. Ainda mais os dos peões que perdem o concurso, os touros apanham, são mais torturados ainda, viram churrasco?

" Você quer mesmo que eu conte o que aconteceu?"

- Me desculpe, eu sei que estas indagações incomodam muita gente, mas, por favor, me conte o ocorrido.

"- Então, o tal do Gustavo se não bastasse ter organizado tudo, e cansado de tudo, ainda cismou que iria montar um touro dele, só para agradar a noiva! Coisa estúpida, de homem apaixonado! Já tinha pagado um mico danado, cantando para ela no palco uma música que ele compôs para ela. E isso já bastava de homenagem, mas ele queria mais. Dizem que até tentaram demovê-lo da idéia besta, mas em vão, sabe como é: tava se achado o tal e tudo mais! Excesso de confiança. Falaram até que ele entrou na arena com uma rosa vermelha e jogou para a talzinha. Coisa que geralmente é o contrário: desde a época dos torneios medievais, as damas é que jogam flores ou lenços para os cavaleiros."

"- Ele montou o tal touro que parece que não era tão bravo, só era grande e chifrudo, muito forte! E numa destas ironias do destino ele se acidentou, o touro rasgou seu ventre com os chifres, abrindo do tórax até a virilha!"

- Ai que horror!- mas na hora que ouvi isto, eu senti uma dor aguda na minha barriga também. Um tanto bêbada e influenciada com minha pouca atenção na narração da minha amiga, não dei muita importância. - Ele morreu na hora?

"Não! Foi socorrido, ficou no hospital por dias entre a vida e a morte. Mas aí que a coisa ficou realmente vergonhosa! Sabe como é; no acidente o corte foi muito profundo e,...me parece que ele se feriu de maneira que ficou impossibilitado permanentemente. Se feriu de forma que o tal machismo presente tanto na mente do povo, como na mente dele próprio."

- Acho que estou entendendo!

"- Em certas coisas ou situações, o caráter da pessoa nunca é levado em consideração. Para todo mundo ele deixou de ser homem, e aleijado, não tinha serventia para mais nada. Esse povo é muito cruel! E o rapaz que antes era o rei da cocada preta, o futuro prefeito, o deus grego, coitado... E parece que todo mundo esqueceu da sua bondade, de se altruísmo, e mesmo com dó dele, virou motivo de piada! Todo mundo não falava de outra coisa, riam dele. Até a talzinha periguete não foi nem no hospital ver depois que ficou sabendo do real estado. Nem para mostra amizade, dar conforto. Tudo bem que ela não iria mais se casar com ele, até porque a igreja mesmo não iria celebrar um casamento daquele tipo. A maldade está presença até no disfarce das virtudes. Mas ignorar o cara por completo, só deu razão para mãe dele, não é verdade? "

Fique muda nesta hora eu nem sabia mais o que pensar! As emoções eram tantas, que a só o fato de eu não só ter visto assombração, como ter me apaixonado por uma, eram os menores dos meus problemas. Eu sentia uma dor forte, outra dor, eu sentia sim a dor física, parecia que minhas entranhas estavam sendo evisceradas, mas meu coração estava muito apertado. Desatei a chorar..., chorar de tristeza, de agonia, de pena, até que vi eu estava chorando lágrimas que não era minhas. Minha amiga me abraçou, e perguntou o motivo deste destempero. Não sabia que eu era tão sensível, mas eu lhe contei o motivo da minha emoção. Falei da minha música atordoante, da madrugada na rua, das visões, dos meus sentimentos, de tudo.

"- Nossa, acho que os seus estudos estão te fazendo mal! Você ta fazendo conta de mais, as ciências exatas estão muito presentes na sua vida, você está vivendo fora da realidade. Precisa arrumar um novo namorado, ir a um psicólogo..."

-EU NÃO ESTOU LOUCA! EU SEI O QUE VI,O QUE SENTI, O QUE OUVI, VOCE TAMBÉM OUVIU A MÚSICA!

"- Eu sei que você não está louca! Psicólogo não trata de louco, trata de sãos, quem cuida de louco é o psiquiatra, e mesmo assim tanta gente que vai ao psiquiatra não é louco, são pessoas que estão com problemas emocionais, eu mesmo fui a um quando me separei, precisava me conhecer melhor, de dar um tempo para mim!"

- Você está com as chaves aí?

"- Estou, você não está pensando em ir lá agora?"

- Estou, você não precisa ir, eu vou sozinha, só, por favor, me empreste as chaves!- Neste ínterim a música começou a tocar novamente, mas desta vez a mesma música não parecia ser tão triste, eram os mesmos acordes, porém tocados mais rápidos e em uma escala mais alta, mais alegre, parecia música de festa.

"- Ficou louca? Está ouvindo a música?"

- Sim, é o Gustavo me chamando!

"- Você está bêbada, nós estamos bêbadas, aliás, na pior da hipóteses, o que você faria com um fantasma faltando pedaço? Nem para íncubos ele serve. É só uma alma penada!"

- Como assim faltando pedaço? Aparição é aparição, nem sempre o corpo todo do espírito fica plasmado por completo. E tem espírito elevado que se plasma da maneira que quiser.

"- Nossa, como de repente você virou especialista em fantasmanologia!"

- Especialista em quê?

"- Deixa pra lá, vamos beber mais, e pronto!"

- Por favor, me empreste a chave, me deixa ir lá, eu prometo que se ver alguma coisa eu saio correndo de volta!

" - Você não está no estado nem de pegar na fechadura! Quem dirá pegar uma chave antiga, destrancar uma maçaneta que faz uns quinze anos que não gira. E ainda subir uma escada empoeirada, no escuro, entra num lugar que só Deus sabe o que tem lá, e olha que eu to falando de ninho e rato, de cobra, de escorpião, teia de aranha, estas coisas..."

Ela estava sendo sensata. Coberta de razão. Naquele estado lastimável, nem se eu voltasse para o João implorando para reatar, ele não iria dar confiança, e ainda me enfiaria debaixo do chuveiro frio.

"Amanhã você vai lá, eu prometo que te empresto a chave! Você mata a curiosidade, e se quiser pode pegar para você o que quiser, até tacar fogo em tudo que ta lá. Eu não me importo, só não taque fogo no meu bar..."

Acabamos de enxugar a última garrafa e desmaiamos na sala mesmo. Nem notei quando a música parou, dormi feliz com a promessa da minha amiga. Acordamos lá pelas dez e ela logo pegou o telefone para saber dos filhos se achando a mãe mais desnaturada do mundo. Felizmente não tinha estágio naquela manhã, e à tarde a escola teria de novo reunião de pais e mestres. E eu não estava ainda à frente de nenhuma classe para ter que enfrentar os pais naquela ressaca.

E confesso que fiz uma coisa um tanto vergonhosa, peguei o molho de chaves dela e tirei a chave mais velha e enferrujada que tinha via que ela se esquecesse da promessa. E quando ela foi embora, tomei um banho, me vesti de vermelho de novo, me maquiei, perfume de alfazema. Peguei umas velas, o incenso, uma rosa vermelha do vaso do altar: "Licença minha mãe, te trago outras inda hoje! Abençoe-me e proteja!"- e aproveitei a claridade do resto da ensolarada manhã e fui para lá me aventurar no apartamento.

Fiz força com cuidado na fechadura, mas consegui com algum jeito destrancar a porta. Vi que tinha gente me olhando, mas que se dane, ninguém tem nada com isso, até que ouvi um senhor assobiando: "- Ei moça, moça!"

Eu virei já com vontade mandar o homem se catar, mas no susto eu duas coisas e sua face: uma cicatriz horrível no rosto que cobria a cara toda e seus olhos azuis.

Tentei disfarçar o olhar, mas ele me perguntou:

"- Senhora via entrar aí porque também esta escutando o lamento do falecido?"

- Acho que está na hora de acabar com este tormento, afinal ele morreu, não foi?

"- Morreu sim, morreu de tristeza, de infecção no pós- cirúrgico, de depressão. Botaram ele aí quando saiu do hospital, carregaram ele escada a cima, igual saco de feijão, e largaram ele lá, nem a família ia visitar. Eu e minha mulher, e o irmão que cuidamos dele nos últimos dias".

Parei um pouco e fiquei ouvindo ele contar sua versão.

"-Nossa moça, que Deus te abençoe e liberte a alma dele! Um homem... não é nada! Deus me livre de uma coisa parecida. O pobre rapaz não merecia aquele fardo, parecia macumba feita, coisa de gente invejosa, que queria matar mesmo!

Achei que o fato de citar a palavra macumba era para me espetar de alguma forma, tipo: "Eu sei o que você faz!"- Mas como eu não tenho que dar satisfações a ninguém...

- Por que o senhor acha que eu posso libertar a alma dele? Eu estou pensando em alugar o apartamento, só isso, minha casa é muito pequena, e aqui ta vazio, assim fico perto de minha amiga, e mato dois coelhos...

"Vá lá, minha filha, faça o que deve ser feito, o que seu coração mandar! Toda maldição um dia chega ao fim, e o Gustavo, por mais que a gente reze, acho que ele precisa mesmo de alguém que se importasse mesmo com ele, não desse importância para sua condição. Minha filha, se as pessoas soubessem como tudo é uma grande ilusão, que todo mundo cai no canto de sereia, as coisas nunca são o que aparentam ser..., meu neto pagou por meus pecados, e minha filha coitada, só fez o que ela achou que estava certa, agiu da forma que eu ensinei..."

Parei e olhei para os lindos olhos azuis do velho... mas aí sim eu vi que tinha juntado um monte de pessoas na rua, e todos eles estavam cochichando entre eles e rindo baixinho. Uma mulher que vestia uma saia medonha e de cabelos presos de forma desbeiçados, parece que arriscou um sorriso sarcástico, e me perguntou feito uma metralhadora?

"- Você ta passando mal? Ta falando sozinha? Por que quer entrar onde moram demônios?"

Falando sozinha? Como assim? E vi que o velho de olhos azuis já tinha partido e então entendi a situação. Eu estava na esquina, e daquele ângulo percebi que não tinha para onde ele ir, em frações de segundos sem que eu soubesse que direção tomou. Ignorei a provocação, e tranquei a porta atrás de mim; não preciso de platéia.

Subi as escadas e realmente o que vi foi de partir o coração. Os sofás velhos e empoeirados todo rasgado pelo tempo, estantes cheias de discos lps e fitas cassetes, livros, várias e várias fotos do tal Gustavo abraçado com crianças, cantando, abraçado com outras pessoas, com uma menina muito linda por sinal, tinha várias fotos desta moça espalhados, e eu assoprava a poeira dos porta-retratos para ver tudo. Tinha um calendário do ano de 1995, algumas contas antigas, papel, medicamentos espalhados, mofo, muito mofo. Aranhas por toda parte, restos de fezes de animais, baratas mortas por toda parte. Um caos, um caos, uma sujeira total, um estado lastimável aquele apartamento.

Fui até um quarto e vi uma coisa curiosa: uma viola em bom estado, limpa, com cordas novinhas e afinadas, junto de um chapéu de cow-boy também limpinhos! E na cabeceira do criado-mudo um vaso com água fresquinha. Depositei minha rosa lá e senti que tocavam de leve meus cabelos. Na correria me esqueci da chapinha, meu cabelo armado deveria estar cobertos de fios de aranha.

Me virei e vi o violeiro sorrido, todo iluminado! Ele é lindo, parece um anjo! Tem olhos claros e radiantes, os cabelos claros esvoaçantes!

Abraçamos-nos e nos beijamos! E não me importa se eu estava vivendo em um mundo e ele em outro. Sentei-me em uma cama tão diferente daquela velha e imunda. A cama era macia e com tecidos de seda, cheirando a flores, afinal ela estava toda coberta de pétalas de rosas vermelhas... Ele pegou a viola, colocou seu chapéu, e começou a tocar... Acordes que só os anjos sabem quando dedilham suas harpas...