Hotel Granada

Meu nome é Alexandre. Infelizmente nunca contribuí com relatos ou qualquer coisa do gênero do material da Casa Fantasma. Sinto muito, mas nunca vivenciei situações realmente merecedoras de figurarem no rol de relatos da Casa. E também não tenho inspiração para compor um conto. De modo que sou meramente um consumidor do material. Tenho - como acredito que todos na vida tenham - algumas situações estranhas vividas ao longo da minha jornada. Nada realmente inexplicável, apenas estranhas. Coisas que Mesto diria "Não agrada a Mesto". Mas me proponho a algum dia colocar no papel e enviar, apenas para não ficar me sentindo como alguém que só consome e não contribui.

Sou um leitor antigo que adorava se entregar ao doce e misterioso mundo da Casa Fantasma, na época do Mesto. Muito me fascinava este universo, particularmente quando várias vezes, a passeio, eu ia a Minas Gerais (Barbacena, São João Del Rey, Tiradentes, São Lourenço, dentre outros) e hospedado em casas antigas, ficava lendo até tarde da noite (ou melhor, altas madrugadas) os relatos que previamente eu imprimia, antes de viajar, para me deleitar já visando estes ambientes em Minas Gerais que, não sei exatamente o motivo, me integravam de forma inexplicável ao mundo da Casa Fantasma.

Certa vez, estava em São Lourenço hospedado em um hotel chamado Hotel Granada (ainda existe). Este hotel é bem antigo e naquele estilo que parece uma casa de avó, com salas de estar com poltronas e mesinhas com panos de renda e jarro em cima, enfeites, quadros, tapetes, etc., bem ao estilo daquelas vós mineiras, he, he...

Eu havia impresso previamente vários relatos, antes de viajar para lá, com minha esposa e meus dois filhos. Na época eles eram pequenos e gostavam, de antes de dormir, que eu os levasse a um barracão no pátio de serviço deste hotel, que fica (ou ficava, não sei, faz mais de seis anos que não vou lá) junto ao estacionamento, para ver a caldeira. Tratava-se de fato de uma caldeira, estilo industrial, que era responsável pelo aquecimento da água utilizada no hotel para banho, cozinha, etc. E era a lenha. Então, eles gostavam (e eu também) de tarde da noite, irem lá fora e no ar fino e frio da noite, sentir o cheirinho da lenha, ver a madeira crepitando na fornalha, sentir o calor gostoso irradiado daquele barrilzão e ver o pátio envolto num halo de mistério, causado pela névoa que ficava rente ao chão (na verdade uma mistura de névoa e fumaça da chaminé da caldeira, que tinha um suave e agradável aroma de eucalipto, que não sei exatamente por que motivo - coisa da atmosfera e do clima - ao invés de subir, descia), que dependendo de quanto mais fria a noite estivesse, as vezes quase não dava para ver os pés no chão! No céu, estrelas a perder de vista...

Certa noite, após olharmos a caldeira, subimos pro quarto e nos preparamos para dormir. O quarto que estávamos era na verdade formado por dois quartos e um pequeno corredor, onde ficava o banheiro. Então os meninos ficaram no quarto com duas camas de solteiro e eu fui para o quarto com a cama de casal, com minha esposa. Mas eles queriam dormir. E eu queria ficar lendo. Então, para não incomodar com a luz acesa, eu saí do quarto e fui para um sofá que ficava no corredor, próximo às escadas.

O Hotel Granada é formado pelo andar térreo, onde há a recepção, salas de estar, salas de serviço, refeitório, alguns quartos e um segundo andar, onde ficam a maioria dos quartos. Só que existe ainda tipo um terceiro andar, que fica fechado. Não é um terceiro andar de verdade, tanto que da rua não se vê. Apenas enxerga-se a platibanda que cerca o telhado. É uma espécie de sótão. Mas as escadas são como se existisse um terceiro andar. E há (ou havia, não sei) uma grade pantográfica, trancada com cadeado, bloqueando a passagem. E da grade dava para ver a entrada para o sótão, como já disse, parecendo um outro andar.

A iluminação do corredor naquele ponto ficava bem débil, de modo que lá dentro não dava para ver nada. Achei interessante aquilo e fiquei olhando um bom tempo, imaginando as coisas antigas que deviam haver guardadas ali. Depois fui para o sofá e com minha coleção de relatos da Casa Fantasma, sentei e fiquei lendo. Não era feriadão, de modo que o hotel estava praticamente vazio. Tanto que eu nem me importei de ficar ali no sofá vestido de pijama, com casaco por cima, pois estava bem frio.

E sentado naquele ambiente gostoso, fui lendo várias histórias e relatos. E de vez em quando, a visão periférica captava alguma coisa como se fosse um movimento ali na parte da escada após a porta pantográfica, próximo à entrada do sótão. Atribuía este fato à minha imaginação. Eu estava sentado lendo e, lá para as tantas, comecei a lutar contra o sono, pois embora a leitura me excitasse, eu estava fisicamente cansado por causa da viagem. E sem perceber, acabei dormindo sentado.

Não sou sonâmbulo, tenho sono pesado e nunca ninguém mencionou qualquer fato relacionado a sonambulismo de minha parte. O fato é que não sei a que horas, acordei sem o casaco, deitado no sofá, com o maior frio. Ao abrir os olhos, busquei atualizar na consciência a situação, ou seja, onde estava, o que fazia, etc. Então lembrei, que estava lendo no sofá e acabei dormindo. Mas aí me dei conta que estava sem o casaco e estava morrendo de frio e fiquei tentando me lembrar porque tirei o casaco. Fiquei imaginando se Márcia teria vindo até ali. Mas logo descartei esta possibilidade, porque se ela tivesse ido ali ela teria é me levado para a cama! E outra, jamais teria tirado meu casaco! Imaginei então se não teria sido algum funcionário do hotel, ou algum hóspede. E não encontrei sentido naquilo. E sentado no sofá, intrigado imaginando o que teria acontecido, comecei a lembrar de um sonho que havia tido, nesse tempo que dormi ali. O curioso é que naquela hora eu lembrei de várias coisas do sonho, tanto que lembro de ter ficado perplexo, curioso e espantado, apesar de ter sido um sonho gostoso.

Então procurei o casaco e não achei. Procurei também os relatos impressos que estava lendo sentado antes de dormir e não achei. Como estava bebum de sono, levantei e fui pro quarto, sem maiores questionamentos. O curioso é que quando acordei, senti uma zoeira nos ouvidos, como acontece como quando estamos em um lugar com barulho e em seguida entramos em um local silencioso, mas o ouvido permanece como que reverberando os sons do outro lugar que estávamos. E também estava com um cheiro na camisa do pijama, que era uma mistura de cheiro de perfume, fumaça de cigarro e fumaça de lenha de eucalipto. Mas não dei importância a isso, devido ao sono. Cambaleei pro quarto, dei uma olhada nos meninos e lembro de ter deitado com cuidado, para não acordar Márcia.

...

Acordei devagarzinho do dia seguinte, com o som dos meninos brincando no outro quarto e o som da TV que Márcia assistia, no nosso quarto. O sol entrava gostoso pela janela e batia bem em cima de mim. Sentia um ótimo bem estar. E automaticamente rememorei os acontecimentos da noite. Não havia me movido ainda, mas Márcia virou-se e falou "Booom dia, dorminhoco!". Eu perguntei se já era tarde, achando que tinha dormido muito então ela falou que não, não eram nem 8 horas ainda, mas que eles estavam doidos para ir tomar café e estavam me esperando.

Então olhei o jeito do sol e vi que era mesmo sol de umas 8 horas da manhã. Então me espreguicei, tirei o cobertor de cima e fiquei olhando pro teto, tentando dar sentido às lembranças. E perguntei para Márcia porque ela tirou meu casaco e porque ela não me trouxe para a cama. Imaginei que ela responderia alguma coisa tipo "você estava suando" ou sei lá o que. Mas para minha surpresa ela respondeu "Tirei seu casaco? Que casaco? E não tirei seu casaco!". E contei para ela, que fiquei lendo lá no sofá sentado, ontem após aquela hora que saí do quarto para deixar eles dormirem e quando acordei, estava deitado sem casaco e com frio. E lembrei também que não achei as folhas impressa.

Ela não deu importância e falou para procurar lá mesmo, que devia ter caído atrás do sofá e que eu mesmo devia ter tirado o casaco, com calor. Achei razoável o comentário, levantei e fui tomar banho para tomar café. Durante o banho, fiquei tentando lembrar do sonho que tive enquanto dormia no sofá, só que não lembrava de quase nada! E fiquei desapontado, com uma sensação de ter perdido uma coisa boa, porque eu sabia que naquela hora que eu acordei no sofá do corredor eu lembrei do sonho todinho! E fiquei chateado de não lembrar mais de quase nada. E das coisa que eu lembrava eram cenas espaçadas, quebradas na seqüência. Mas veio na memória por exemplo que eu estava em uma festa. O salão da festa era todo de madeira e a cobertura era de telhas. O chão, apesar de ser de madeira, era todo quadriculado branco e preto, como um grande tabuleiro de xadrez, tipo como é o piso do saguão do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. E lembrei também que na festa havia um camarada tocando um piano daqueles tipo com cauda. Havia bastante gente fumando e apesar disso o ambiente era aconchegante.

Apesar da lembrança da festa ser gostosa, a imagem repentina de que havia uma neblina como que de fumaça no salão me chocou, porque na seqüência isso me lembrou que teve uma hora que eu estava num daqueles bancos altos no balcão, conversando com uma mulher que falava em francês (e eu entendia! Não lembrei o assunto, mas lembrei que eu entendia o que ela falava. E eu não falo francês!!!) e que depois de um tempo de já estarmos conversando, ela se apresentou, eu também e apertamos as mãos. E um pouco depois eu sentado meio de lado no balcão, olhando ela falar, eu apoiei o cotovelo no balcão e apoiei o queixo com a palma da mão e fiquei sentindo o cheirinho gostoso do perfume dela, que quando nos cumprimentamos ficou na minha mão!

Nessa hora, abri o box e todo molhado mesmo fui no gancho onde tinha pendurado o pijama e cheirei. Estremeci, e foi como se uma sirene tivesse ligado devagarzinho no meu ouvido e fosse aumentando, porque o cheiro na minha roupa combinou exatamente com o que veio da lembrança do sonho. Fiquei novamente perplexo e atônito. Voltei para o box e fiquei desesperadamente tentando lembrar outras partes do sonho, mas não consegui. Apertava os olhos com força, como se isso pudesse me restituir as lembranças do sonho, mas em vão. E depois, devagar, apenas mais duas coisas voltaram na minha mente: a primeira, a cena de eu estar conversando com um camarada num lugar alto, como um pequeno terraço, e ele explicando alguma coisa sobre a cidade. Era noite estrelada. Me dei conta que o cara que falava comigo era o pianista, porque ele tinha umas costeletas bem longas e ele usava daqueles ternos completos, com colete e tudo que eu observara enquanto ele tocava o piano. E seja lá onde estivéssemos, era junto ao salão da festa, porque dava para ouvir o som do piano tocando (alguém devia estar revezando com ele) e o burburinho de vozes de mulheres, tilintar de copos, etc. E enquanto ele falava, eu olhei para baixo e vi a Parati (meu carro) estacionado lá embaixo. E a brisa da noite trazia para cima de nós a fumaça com cheiro de eucalipto de uma chaminé próxima.

À medida que eu relembrava estes fragmentos do sonho, eu sentia o coração bater acelerado.

A última coisa que consegui lembrar, ainda durante o banho, foi que lá pras tantas, de novo no salão da festa, deu calor e eu olhei o terno que usava e tirei o casaco. E me dei conta que eu também estava de colete, camisa branca e gravata borboleta. E coloquei o casaco do terno no encosto de uma cadeira. E eu estava com uma coisa na mão que não consegui ver o que era. Mas lembro que havia uns escaninhos perto da cadeira, como estes escaninhos de guardar garrafas de vinho. E quando vi aquilo, eu peguei seja lá o que eu estivesse na mão e coloquei ali.

E não consegui lembrar de mais nada.

Atônito, saí do banho e nem contei pra Márcia o lance do sonho, por causa que tinha mulher na parada, então para evitar qualquer tipo de possível mal estar, preferi ficar calado.

Nos aprontamos e saímos para o café. No caminho, no corredor, olhei o sofá, afastei ele, procurei embaixo e nada de casaco nem das folhas. Descemos e antes de irmos para o salão do refeitório, passei na recepção, deixei a chave e perguntei se algum funcionário havia recolhido um casaco e umas folhas impressas. O rapaz disse que ali não estava mas que ele iria checar com as camareiras.

E fomos pro café. Nos demoramos bastante, pois aquele café é um banquete. Então comemos bem devagar, para aproveitar de tudo um pouco. Como havíamos programado de fazer umas compras na feirinha de artesanato e ainda ir no Parque das Águas, após o café nem voltamos ao quarto. Saímos direto. Voltamos à tardinha. Ao passar na recepção para pegar a chave, o rapaz da hora pegou a chave e percebi que havia um papelzinho agarrado nela. O rapaz olhou, leu e falou "Ah, sim, senhor Alexandre..." e foi na gaveta da mesinha e pegou uma sacola plástica e me deu. Então eu vi que eram o casaco e as folhas. Comentei "Ah, acharam, obrigado. Estava no sofá né?" O rapaz apenas sorriu e não confirmou nem negou. E fomos pro quarto. À noite saímos para comer pizza e quando voltamos eu vi na recepção o primeiro rapaz, aquele a quem eu havia pedido para checar se haviam encontrado meu casaco e as folhas. Então agradeci e comentei que o outro rapaz havia me entregue as minhas coisas. Ele sorriu e fez com a mão sinal de "jóia". Dei a chave pros meninos e eles saíram correndo para o quarto. Quando eu e Márcia já estávamos indo também, esse rapaz que fez "jóia" debruçou no balcão da recepção e falou sorrindo "Seu Alexandre, como o senhor entrou lá?"

Paramos no corredor, eu e Márcia, eu me voltei pro camarada e fiquei olhando sem entender a pergunta. Então falei "- Lá - aonde?" e ele respondeu "Lá, no depósito!". Fiquei gelado e parado no corredor. Márcia não se deu conta do meu espanto e falou simplesmente "Deixa eu subir senão esses garotos vão fazer bagunça lá" e subiu. Eu voltei devagar para o balcão da recepção e, olhando para o camarada, perguntei "Que depósito cara?" e ele disse "o que o Sr. deixou o casaco e as folhas"! Perguntei onde fica esse depósito e ele falou que é no sótão. Eu fiquei olhando para ele sem saber o que dizer, tentando perceber se era uma pegadinha ou se ele estava espontâneo, já que o fato deles falarem conosco sorrindo é, creio, questão de praxe.

Então eu respondi que não havia ido lá. Que não sabia quem havia levado minhas coisas para lá. Então ele contou que o cara que cuida da manutenção do mobiliário foi lá como costuma fazer e viu o casaco em uma cadeira, no meio do caminho. E achou que alguém do hotel foi ali para pegar alguma coisa e esqueceu. E que junto à entrada tem uma treliça de madeira e nela estava encaixada em forma de um canudo, as folhas, pela ponta, em um dos losangos da treliça, de modo que as folhas enroladas ficavam meio que atrapalhando a passagem, o que levou o cara a pensar que o mesmo funcionário que esqueceu o casaco esqueceu também as folhas.

Aquilo me chocou muito. E nesse momento eu lembrei que quando peguei a sacola com o casaco e as folhas que o outro recepcionista havia me dado, à tarde, as folhas estavam mesmo encanoadas, como se estivessem ficado enroladas. E eu não as havia enrolado.

Fiquei sem ação, ainda achando que tratava-se de uma pegadinha. Não sabia o que dizer. Então perguntei pra ele se o piso lá no sótão é quadriculado preto e branco. Ele estranhou a pergunta e falou que não, que o piso é de tábuas de madeira. Meio receoso, perguntei se lá no depósito tem piano de cauda. Ele então respondeu que não. E diante dessa resposta fiquei satisfeito. E já me preparava para encerrar o curto diálogo, quando ele acrescentou: "O piano é aquele que agora fica no refeitório". E de novo, parecia que uma apito começasse a soar baixinho e rapidamente aumentasse no meu ouvido. Gelei de novo!

Pra encerrar o assunto, eu perguntei: "O depósito do sótão foi sempre depósito ou já funcionou outra coisa lá, tipo salão de festas ou bar?". Mas ele apenas sorrindo respondeu que não sabia, que aquele hotel é muito antigo e que ele não era tão velho assim. Sorri também, dei-lhe boa-noite e subi para o quarto.

Nem ele ficou sabendo como eu entrei lá nem eu mesmo fiquei sabendo como minhas coisas foram parar lá. Enquanto subia as escadas, fiquei pensativo sobre como várias coisas das poucas lembranças que tenho do sonho se encaixavam com a realidade. E fiquei ainda com uma forte impressão de que tudo aquilo fosse uma pegadinha.

Até hoje não sei o que realmente aconteceu. Sei que no dia seguinte chequei no refeitório e realmente havia um piano de cauda lá. Fica logo na entrada, à esquerda. Como fica coberto com uma lona cinza e sobre ela umas toalhas de renda, com jarros e flores, eu nem havia percebido que era um piano.

E já faz muito tempo que não volto lá, mas o Hotel Granada ficou pra sempre como minha pousada em São Lourenço.

Como disse no início, não é nada realmente misterioso ou inexplicável. Devem haver várias explicações lógicas e sensatas para o ocorrido. Mas, como diria o Pequeno Príncipe, "Quando o mistério é muito impressionante, a gente não ousa desobedecer". E neste caso eu obedeço a sugestão de minha mente que diz "não tente desvendar"! É que prefiro esse clima de mito, do que descobrir que o que ocorreu não tem mistério nenhum! Afinal não corro risco de ser vítima como no caso da esfinge que dizia "Decifra-me, ou te devoro!".


Alexandre Faccion